Thursday, February 26, 2009

Enxurrada





Mãe que mandou eu acender as vela.
Acender as vela, e rezar, pedindo proteção.
“E eu sei lá rezar, mãe?”
“Pede, minha filha, pede que hoje eu preciso sair.”
E eu pedi, lá do meu jeito mesmo, fechando os olhos, como nas historinha que eu vi quando dá chuva bem grande e traz até revistinha na lama.
Mas mudou foi nada.
Pensei em chamar pela minha mãe, mas a palavra morreu na boca. Ela tava agoniada demais, andando pra lá e pra cá com a roupa do trabalho. Ia sair.
“Nada de sua prima. Eu preciso ir, minha filha. Acenda a vela”
“Tá acesa, mãe.”
O barulho da água descendo o morro quase não deixava a gente conversar.
“Ai, meu Deus, é hoje que esse morro desaba.” - gritaram de fora.
“O morro desaba, mãe?” - perguntei, assustada.
“Desaba nada, besteira desse povo que não tem o que fazer.”
Mãe até tentou, mas tava na cara que não botava muita fé na madeira e nos pregos.
O céu em cima também ouviu, e respondeu do jeito dele.
“Vailha-me, Deus! Não posso levar você não, mas tu já é grande, pode ficar um tempo só.
Tranque tudo, viu?”
Mais trovão.
Num susto, mãe apagou as velas. As brancas. Foi lá dentro batendo os saltos, brancos também, e trazendo outras.
Me carregou com força pelo braço, ajoelhando.
E acendeu. Pretas e vermelhas.
“Pede, minha filha.”
“Já rezei, mãe.”
“Não. Chama pelo nome”
E me ensinou.
“Não abre a porta pra ninguém. Ninguém. Tô chegando pela manhã.”
E saiu.
Não consegui dormir. Não consegui fazer foi nada. Comida não tinha, nem água pra beber.
Deitei. Cantei baixinho. Mas a chuva não parava. Tapei os ouvidos com a mão pra não escutar o
aperreio lá de fora. Gente correndo, gritando, barulho d´água braba. Água assassina.
Até que a chuva veio enxurrada. Batendo. Socando. Esmurrando.
Na porta.
Fiquei calada, quietinha como mãe mandou, pra pensarem que não tinha ninguém.
“Tem gente aí?”
Calada. Não vou abrir a porta pra ninguém.
“Se tiver saia agora, tamo desocupando o morro, a água vai levar tudo.”
Pra ninguém.
Acendi a vela. Fiz do jeitinho que mãe mandou. Primeiro a preta, depois a vermelha. E a marrom.
Depois chamei pelo nome.
“Na minha casa ninguém entra.”
Falaram alto, com a minha boca sim, mas aquilo nunca que era a minha voz.
O homem lá fora também se assustou com a força que escancarou a porta.
Mas ele entrou não. Deu nem tempo.
O corpo foi longe, longe, jogado aos pedaços no riacho de lama que virou o morro.
O povo tava tão aperreado que nem bem notou. Eu fiquei rente à soleira, sentindo a água da chuva passando ao meu redor, assustada que tava, sem pingar, sem encostar. Nem sei por quanto tempo.
Mal bateu a manhã, mãe chegou.
Suja de lama, molhada, mas despreocupada. Sabia que eu tava bem.
Pergunta se eu já tomei café e vai direto pra cozinha.
Com o vestido molhado, manchado de lama, pingando areia pela casa.
E sangue.








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