Saturday, March 11, 2017

Sítio Solidão



“Legião é o meu nome, pois somos muitos”
Marcos 5:9

- Eu não sei nem por onde começar.
Desconcertado, o padre arrastou a cadeira pra perto da mulher. O barulho das pernas secas, de madeira velha, era um como um berro mandando continuar.
- O senhor vai dizer que é por ser a mãe, mas né não... Menina linda demais; viva, o senhor me entende? Era como assim feita de uma luz de dentro, nerá que nem esse povo daqui não, que já nasce cinza, tangendo boi, carregando balde d´água na moleira.
O padre só balançou a cabeça devagar.
- Foi depois que ela ficou moça. Eu tava lá fora, lavando na tina a saia manchada, quando ouvi foi um sopapo oco dentro da casa. Corri e encontrei a menina no chão. Sentei apressada porque ela batia a cabeça no cimento com força. Puxei pro meu colo e chamei por Dona Quinha, a vizinha, mas foi chamando e...
O padre aproximou ainda mais a cadeira e segurou as mãos da mulher. Estavam frias.
- Foi uma chuva, padre, uma chuva de pedra por cima da casa... Caindo com força, vindo sei lá de onde. Aconcheguei a menina no peito e esperei passar. Foi parando e ela se acordando. Areada, sem saber quem era, onde tava. Dei um chá que Dona Quinha ensinou, e parece que se acalmou... A gente jantou como se nem fosse; ela rindo, me contando da escola. Parece que não tinha acontecido era nada. Criança tem dessas benção, né? Fumo dormir cedo. Mas eu acordei com ela gritando. O clarão veio com força, a fumaça. O colchão lambido de fogo. Corri, peguei um baldo d´água lá fora e joguei... O guarda roupa, as boneca. Tudo perdido. Só podia ser coisa da lamparina velha. Só podia.
- Eu gelei do pé à ponta quando vi o lampião inteiro, seu padre. Era possível aquilo? - a mulher levantou a vista pro padre, como quem desafia.
O padre cruzou os braços e deu um goto seco, assustado.
- No outro dia a vizinha veio aqui. Ela... – a mãe titubeou. - ...ela é rezadeira, o senhor me desculpe. Já ajudou muita gente. Trouxe umas planta, um terço bento poderoso demais. E lá fomos nós rezar no pé da cama...
A mulher engasgou-se e colocou pra fora um choro doído, trancado dentro dela como quem guarda assim uma coisa podre, que não pode jogar fora.
- Tava sentada ela, de costas, resmungando umas coisas que ninguém entendeu. Foi a gente entrando e a porta batendo; e as janelas e as telhas, padre; as telhas sambando no teto como sendo assim pé de gente.
O padre tentou dizer alguma coisa, mas a mulher não deixou.
- Dona Quinha tomou a frente com o terço e as planta, mas a menina...Néra mais não. Era todinho um homem, véio, debochado, os olhos brancos, revirados, esculhambando os nomes mais feios do mundo! Falando com aquela voz de bicho umas coisas da vida dela que nem eu sabia! Mas a danada arredou pé não, coitada...- as lágrimas já se misturavam com os palavras, molhando toda a boca. - ...rezou com fé, com força...Mas foi aquele condenado dar com a mão que a zuada piorou, e Dona Quinha, na minha frente, subiu do chão e...bem dizer voou pra parede...-  a mulher suspirou fundo. - ...a cabeça se abriu, padre Arlindo...
O padre levantou-se sem perceber. E por uma peinha de nada, não saiu correndo.
- Em nome de Deus! Em nome de Deus eu preciso que o senhor veja a bichinha.
O padre quase não conseguia mais ficar em pé. Mas arrumou a batina amassada e segurou o terço, inseparável, sentindo o suor descer lento pelas costas.
Rezando um silencioso Credo, abriu lentamente a porta quebrada do quarto.
O ferro do sangue lhe pegou pelo nariz. Vinha da poça quase negra de tão rubra, que banhava o chão, brotando do corpo pálido de Dona Quinha, torta feito uma boneca de pano, largada bem no canto da parede.
“...O que não se faz por uma filha, seu padre.” – sussurrava a mulher na sala.
Com o coração aos sopapos, o padre aproximou-se da cama. Já não conseguia mais rezar quando puxou, num susto, o lençol.
Deitada e rígida, restava a menina, com os olhos embaçados e as mãos em garras, de quem lutou até o fim.
- Senhora! – gritou ele, que já não se lembrava do nome da mulher. – Essa menina está morta!
Não houve resposta.
Só aí entendeu.
A bem da verdade, só aí acreditou.
“padre Arlindo...”
- Eu não lhe disse meu nome...
E voltou pra sala, naquele passo de mangue, como andando em um sonho ruim, a tempo de acompanhar o corpo da mulher se erguendo por cima do chão de cimento cru.
- Cadê a menina? – perguntou com um restinho de coragem.
E aquilo riu. A voz era como uma coisa empoeirada, distante como um rádio velho.
- Tá aqui, padre Arlindo. Tá aqui com nóis.
Do lado de fora, as nuvens negras arrudiaram a casa como se pudessem entrar.
-Quem é você?
Dessa vez gargalhou. A boca se abrindo num buraco sem fim, a cabeça jogada pra trás, balançando os cabelos pretos da senhora, que assopravam uma fumaça de enxofre naquela sala sem vento.
- Uma ruma, padre Arlindo. O primeiro e o derradeiro. Nóis já andava por aqui antes, bem antes. E vamo tá aqui ainda, quando tudo acabar.
Atrás do padre, a porta se fechou.


    

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