1975
O sol foi entrando de leve pela janela até encontrar seu rosto. O reflexo o fez levantar-se rapidamente. Foi até o banheiro e deu a clássica olhada matutina no espelho. É, talvez não estivesse tão mal assim. Vestiu-se apressado e foi ao trabalho sentindo-se estranhamente disposto.
Ao contrário dos outros dias, executou seu massante serviço sem reclamações, e conseguiu até assobiar enquanto checava uns gráficos que mostravam o faturamento da empresa durante o mês em que estivera fora. Se inventaram alguma coisa melhor que férias ainda não apresentaram o projeto. Devem estar guardando para o Natal.
"Feliz ,hein? - disse a moça do cafezinho cujo nome ele não conseguia lembrar. Tinha cara de Patrícia.
"Pois é" - sorriu.
"E diferente." - ela parecia assustada enquanto saia da sala
Como assim, diferente? Ele se levantou e quase escorregou na bainha grande da calça. Porcaria vagabunda. Deve ter descosturado. Foi tomar um gole d'água e sentiu um braço segurando o seu.
"Procurando alguém, rapaz? Essa área é reservada. - era o Souza, da tesouraria.
"Deixa de brincadeira ,Souza." - disse entre um sorriso.
"Quem te deixou entrar?" - Souza não parecia estar brincando.
"Me solta, porra, você tá me assustando." - ele empurrou o amigo com a manga do paletó que cobria sua mão.
"Ô Pereira, vem cá um instantinho". - Souza chamava o segurança.
Desnorteado, foi até a porta do elevador e entrou, apertando o botão do térreo. Deu um pulo ao encontrar no espelho um jovem usando um paletó muito grande para o seu tamanho. O que aconteceu? O que aconteceu?
O elevador chegou ao térreo e ele correu mais, puxando com força a barra do terno já muito maior que antes. Tudo parecia grande e distante. As pessoas riam dele. Apontavam. Tinha de chegar em casa. Precisava. Antes que. Preferia nem pensar.
Pegou um táxi. O motorista parecia perplexo:
"Está sozinho, garoto? Cadê a sua mamãe?"
Tentou xingá-lo, mas sua voz soou fina. Voz de criança. Só conseguiu dizer o nome da rua e jogar uma nota alta na mão do motorista.
Saltou rápido do carro e tentou chegar ao saguão do prédio. Distante. Muito distante. Tentava, em vão, alcançar o botão do elevador ante o olhar assombrado do porteiro. Depois do terceiro pulo correu o mais rápido possível para as escadas. Não conseguia subir direito, tinha de abaixar-se e colocar as mãos. Uma por uma. Depois, nem isso.
Se viu coberto por um grande pedaço de pano. Olhou com a turva visão seus pequenos dedos e descobriu-se subitamente interessado por eles. Estariam ali há muito tempo? Passou a língua por dentro da boca, mas tudo que sentiu foi uma gengiva sem dentes. Vários vultos amontoaram-se ao seu redor. Imensos.
"Um bebê." - disseram as vozes. Distantes.
3 Comments:
Márcio Gulliver. Muito bom. Abrs.
chance de ouro esta......
imagina poder viver tudo de novo? tomar algumas decisões, não adotar outras, enfim, uma bola extra da vida......eu quero. Abração meu véio.
uau!!que viagem fantástica!!
lindo dia meu querido!!
beijossssssss
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