Sunday, December 11, 2005

Inocentes



Sentada nas primeiras fileiras do ônibus, voltando do trabalho, tinha seu rosto voltado pro céu. A chuva começava a cair. Lenta, mas decidida, refrescando o infernal calor que fazia na cidade.

A sua frente estava uma mulher segurando uma criança de colo. A menina, sonolenta, mirava-lhe grandes olhos questionadores. Ela fez uma careta de puro nojo. Odiava crianças. Onde os outros viam candura e sinceridade, ela via idiotice. Muitas vezes maldade.

A menininha, subitamente, acordou de sua letargia e passou a prestar atenção na mulher. O seu sorriso sem dentes deu lugar a um pastoreio quase canino. Os olhos, outrora luminosos, mostravam-se opacos, de uma frieza metálica. Acusadores.

A mulher respirou fundo e virou o rosto pra janela, tentando prestar atenção à chuva. Mas ainda podia ver a menina pelo reflexo do vidro. E a menina podia vê-la. Queria vê-la. Permanecia firme e decidida no seu intento, no seu...Ela ia pensar ofício. Ofício! Que bobagem. Esses pequenos demônios não podem fazer isso, pensou. Perturbam, mas são idiotas demais pra. Prendeu a respiração ao perceber um loirinho sentado no banco ao seu lado. Tinha os olhos vidrados nela. Parecia vigiá-la.

Eram dois. Agora seriam dois. A mulher percebeu um sorriso cúmplice. Depois uma comunicação incompreensível. Pelo menos pra ela. Sentiu-se desamparada e sozinha. Quem iria ajudá-la? Virou-se pro lado ao acaso e esbarrou com o olhar resignado de um senhor. Parecia dizer que era muito tarde. Tarde demais pra nós.

A menininha deu um guinchado de puro prazer, no que foi acompanhada pelo loirinho. Uma rainha e seu vassalo. A mulher perdia aos poucos a respiração e apertava a alça da bolsa com força. Fechou os olhos por alguns instantes e pediu pra acordar. Mas não estava dormindo. Estava sim, num mundo que não era seu. Não mais.

O ônibus parou e a porta se abriu com força. A mulher reprimiu um pequeno grito ao perceber os que entraram. Dezenas de pequenas crianças vestidas da mesma forma. Lancheiras penduradas. Sapatinhos bem amarrados. Com frios olhos atentos, vinham numa discreta marcha. Um pequeno exército. À frente, não um general, mas uma prisioneira. Uma mulher que servia apenas para ajudá-los a atravessar ruas e alcançar objetos. Uma mulher que seria eliminada na hora certa.

Ela já tremia claramente ao sentir a travessia do exército. Todos cumprimentaram discretamente a rainha ao passar. O velho levantou-se, pediu parada e desceu. Não sem antes lançar-lhe um enigmático olhar. Um olhar de adeus?

Num instante, um dos pequenos soldados sentou-se ao seu lado. Sentinela. A mulher já trazia discretas lágrimas nos olhos. Precisava sair dali. Precisava arrumar um meio de alertar os outros. Queria acreditar que não era tarde demais.

Foi acordada dos seus devaneios pelo toque de uma pequena mão na sua. Era o sentinela. Talvez a avisando. Poderiam ler mentes? Provavelmente. Procurou pensar apenas na chuva caindo, mas era impossível. Arrepiou-se ao sentir outra pequena mão alisando seus cabelos. Mas uma. Sentada no banco de trás. A rainha a sua frente já não ria. O loirinho ao seu lado tinha o indicador estendido em frente à boca. Silêncio. Eles sabiam. De tudo.

Num gesto de desespero, empurrou as mãos que lhe perturbavam e pediu parada. Ao descer os degraus do ônibus, ainda deu uma olhada rápida aos adultos dentro dele. Pareciam tristes e apavorados. Tanto quando ela. Eles sabiam. A prisioneira que carregava a rainha tinha um olhar derrotado.

Assim que o ônibus partiu, pôde perceber todo o pequeno exército colado aos vidros, olhando pra ela. E sorrindo. O plano já tinha começado. Quantos bilhões de crianças haveria no mundo?
Correu até em casa sentindo a chuva cair sobre os seus cabelos, suas roupas. Ao chegar no prédio, subiu pelas escadas mesmo até seu apartamento. Apavorada, empurrou a chave na porta quase ao mesmo tempo em que o telefone tocou. Puxou o fone do gancho tentando acalmar-se. Crianças não conseguiriam discar, conseguiriam?

Era da clínica. A sua médica. Parabéns. Deu positivo. A senhora está grávida.

Deixou o fone cair, num grito desesperador. O pesadelo estava apenas começando.

13 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Mentira..a caixa não fica embaixo da sua cama...a caixa maluca fica dentro da sua cabeça. Nunca vi um argumento tão bom pra dizer que não gosta de crianças...rs. Lembre-se, você já foi uma...e ai? Vai querer dominar o mundo, Cérebro? Se quiser, o Pink tá aqui...rs.

9:51 PM  
Anonymous Anonymous said...

Marcião, aproveite para passar um dia inteiro em um parque de diversões e você poderá concluir a novela. Hitler teria inveja daquilo que vc pode fazer.

6:24 AM  
Anonymous Anonymous said...

pois eh... cuidado com as crianças... kkkkkkkkkkkkkk
eu garanto, elas podem ser muuuuuito cruéis! que o digam meus alunos...
ai ai ai.... como sofrooooo

6:50 AM  
Anonymous Anonymous said...

Já devidamente embasada, comento:
excelente , como sempre, me lembrou a ALDEIA DOS AMALDIÇOADOS, o antigão.
No mais, concordo com quem disse que pum e criança, só quem fez é que aguenta.

7:11 AM  
Anonymous Anonymous said...

aff!
na continuidade me faz pensar em o bebê de Rosimary..
sinistro conto!!
linda semana
beijossssssss

3:08 PM  
Anonymous Anonymous said...

Oi encontrei seu blog e gostei dele.Tem textos ótimos aqui parabens. Quando puder dê uma passadinha la no meu não ta tão bom quanto o seu mais vou gostar de sua visita la.
beijinhos pra vc e uma ótima semana.

4:54 PM  
Blogger Ordisi Raluz said...

Um texto à altura de um Mochileiro. Não entrarei em pânico qui nem ela, hehehe. Valeu, Marcio. Abrs.

6:16 PM  
Blogger Madame said...

Obrigada pelo passeio de ônibus.

4:42 AM  
Blogger b.ponto said...

ooo.. bem que achei estranho vc ter sumido.
legal o blog novo. tava tendo problemas com o terra, foi??

vou ler os outros.

abraco
b.

9:28 AM  
Anonymous Anonymous said...

só passando e deixando beijossssssssssss

1:17 PM  
Anonymous Anonymous said...

De todas as descrições do inferno, desde a Bíblia até A Divina Comédia, a sua foi a pior de todas. Crianças por todos os lados?! NÃAAAAAAAAAAAAAAOOOOOO!!!!! Que pesadelo é esse?!
Abaixo a República das Fraldas!

11:15 PM  
Blogger UmZé said...

Fala Marcio, demorei mas vim. Texto simplesmente foda. Sou suspeito porque gosto de texto assim. Mas você sabe fazer e isso faz a diferença. O sentimento da gravidez ficou muito legal e o final melhor.
Abraços.

5:24 AM  
Blogger LAventury said...

Descobri o blog por acaso! Tô explorando os textos, muito bons! Parabéns! Esse então e de F..., Sinistro.

4:39 AM  

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