O acordo
“Sorte? Você acredita mesmo em sorte? Pois eu vou lhe dizer uma coisa: doutor, isso de sorte existe não!”.
O mendigo já falava meio alto, sentado na cadeira amarelada. Amanhecia.
“Você acha mesmo, de verdade, que a porra de um jogador de futebol que passou a infância todinha no meio da rua, fudido da vida, de repente é “descoberto”? Por acaso? Acaso? Sério mesmo? Hein? Tu acha o quê? Que um cantorzinho que perdeu anos, anos da vida dando a bunda pra um bar qualquer de beira de estrada de repente estoura nas rádios...por sorte? Ninguém nasce com a bunda virada pra lua, doutor!”
Ele já tomava bem a terceira dose da cachaça, de uma virada só. Seus olhos pareciam ainda mais vermelhos do que antes.
“Não existe, doutor. Não existe isso de sorte, de acaso, de carái nenhum. O que eles todos, o jogador, o cantor, todo mundo que se deu bem, o que eles conseguiram foi parte de uma coisa muito mais certa do que sorte. E muito mais simples...”.
Ele parou um pouco pra pedir mais uma dose. Era ano-novo. A manhã dum ano- novo em que eu tomei todas de novo e me perdi de todo mundo. Passei a virada irremediavelmente só, a não ser pela garrafa de vinho que eu trazia no colo. Fiquei sentado vendo os fogos pipocando no céu.
“Olhaí, doutor. Olhaí pressa gente toda passando na rua. Você acha de verdade que vai ter espaço pra todo mundo? Pra cada um? Balela”.
Os fogos tinham terminado faz tempo e o sol já vinha surgindo por dentro do mar. Era um novo ano, mas eu era o mesmo merda de antes.
“Digo e repito. Cada um que chegou lá, doutor, cada um que venceu na vida, teve um empurrão”.
Sozinho na praia, meio bêbado, meio derrotado, sem conseguir andar direito por causa do vinho, eu desejei do fundo do meu coração. Desejei que tudo fosse diferente.
“Mas a coisa é muito mais fácil do que parece, doutor. Cada um deles, doutor, cada um deles que disse sim pra um agente, pra um olheiro, já tava esperando...Ora, era um acordo, doutor!”.
Foi então que ele apareceu. Um mendigo. Catando latinhas na praia. Perguntando se eu queria mesmo que tudo fosse diferente. Meio brincando eu disse que sim. Queria que tudo fosse diferente.
“E você acha o quê, doutor? Que eu brotei na tua frente de surpresa? De repente? Sério mesmo?”
Foi aí que, meio sem saber porquê, acabei levando o mendigo pro bar. E ouvindo a sua história.
“Tu lembra não, doutor? Não lembra que queria ver tudo mudado?”.
Eu sempre tive essa coisa de atrair gente meio fraca do juízo. Bêbados, loucos, mendigos. Todos. Quando estava numa roda de amigos, bebendo em algum lugar, era sempre a mim que eles se dirigiam. Diretamente.
“...tudo mudado? E aí, doutor? Topa? Aceita? E a gente só pega a nossa parte depois, olhai que coisa boa! Muito depois. Depois de você ter curtido tudo, vivido tudo, doutor! Diz aí.”
Sorrio. Balanço a cabeça. Tentado a aceitar, claro. O que eu poderia perder? Como ele mesmo disse.
“...tudo, doutor! Diz aí. É só dizer sim, doutor, precisa nem assinar nada.”
Abro a boca pra dizer sim, mas, digo não. Digo não num sorriso. Sem saber porquê.
“É. Você quem sabe, doutor. Vou te deixar aí. Em paz. Feliz ano novo, doutor. Tudo de bom. E quem sabe eu não volto qualquer dia, doutor? Brigado aí pela branquinha...”.
O mendigo levanta sua carcaça velha do bar; sorri meio de lado, faz uma reverência com a cabeça e se manda, devagar.
O sol já bate forte, queimando meu corpo. Ele vai indo embora sob um estranho ruído. Um barulho seco. Como saltos altos? Não. Como cascos. Perco a respiração por alguns instantes. O mendigo parece ouvir e pára. Vira a cabeça pra o meu lado e sorri. Seus olhos estão vermelhos. Prefiro pensar que foi o vinho, que foi o sono, que foi o sol.
Quando eu estiver indo embora, vou perceber, jogado perto do bueiro, um bilhete de loteria. Vou guardar ainda por umas semanas, até que, enfim, confirme que ele está premiado.
O mendigo me explicou quase tudo. Só omitiu que, pra aceitar o acordo, não era necessário dizer sim.
7 Comments:
acho que é por isso que nóis se entende...eu, fraquinha do juíjo. brigado amigo! kkkkkkkkkkkkkkkkk
divogado do demo!!!!!!
Fala Marcio! Os pactos dessa vida não precisam de sim ou não, são construidos no olhar, nas palavras, no meio do redemoinho. Às vezes, com quem a gente menos espera...... Um ótimo 2006 prá você, meu camarada. Tem um texto-dedicatória prá você no blog. Um abração.
logo no primeiro dia do ano pactua com o diabo??o que não faz a solidão e a cachaça!!
meu querido Márcio,
que 2006 chegue trazendo esperança e removação pois são esses sentimentos que farão um ano melhor!!!
obrigada por suas palavras e presença me dando alegria!!!
FELIZ ANO NOVO!!!
beijosssssssssssssssssss
primeira semana do primeiro mês de 2006,que venha a sorte,que não se negue a palavra e o sorriso!!!
lindos dias meu querido
beijossssssssssss
Oi, Márcio!!
Entrando pra conhecer. Gostei do texto.
Voltarei.
Beijos e boa semana pra vc
É assim mesmo que o Sete-Peles age. Na miúda, no balcão do bar, no banco da igreja ou na tela do computador. Tem certeza que não quer, dotô?
Sorte eu não sei. Mas azar, com certeza!
looooooooooooooool
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