Saturday, January 07, 2006

O preço do mar


Entardecia. O pescador viu o sol indo embora com um suspiro triste de se ouvir. Os amigos já achavam que ele nunca foi lá muito bom da cabeça, mas da semana passada pra cá tinha piorado muito.

Todo mundo que morava por ali o conhecia. Era o tipo de pessoa que parecia ter nascido em cima de uma jangada. Seus pés nunca bambearam na madeira do barco, seu corpo parecia conhecer de antemão os movimentos do mar. Era só ele subir pra trabalhar que já juntava gente na areia da praia esperando a sua dança com as ondas. Sim. Era coisa bonita de se ver.

Mas o mar sempre cobra seu preço. O pescador só se sentia gente mesmo dentro d’água. Fora, sofria como um peixe preso nas redes arrastadas, com seu andar inseguro, vacilante, procurando uma cadência que não estava mais lá.

Assim que o sol se foi, engolido mais uma vez pelo horizonte, o pescador tomou a decisão. Foi até a jangada, retirou a âncora e partiu por dentro daquele breu.

De uns tempos pra cá, como disse, ele andava bem pior. Não queria saber de comer, tratar peixes lhe dava angústia, pescava apenas pra poder estar dentro d’água. A sua ausência em casa já estava virando motivo de piada na vila toda. Mas ele não parecia se importar. Nem com a sua mulher sozinha e triste, nem com as crianças que lhe xingavam aos berros no meio da rua. Rindo. Cruéis como só as crianças sabem ser.

Manejando o leme artesanal, ele levou a jangada cada vez mais pro meio do mar, em direção aos recifes. Pensou, por alguns instantes, ter ouvido a voz de sua mulher pedindo que voltasse, os recifes eram muito perigosos. Mas era só o vento carregando-o nas suas mãos.

Um dia desses aí, dizem que pegou uma briga feia com Sebastião por conta de um peixe; Sebastião tinha puxado o bicho da água e o deixou morrer em cima da jangada. Os outros pescadores tiveram o maior trabalho em tirar a faca das suas mãos. Por pouco não houve sangue. Foi aí que começou a sua fama de louco.

Finalmente o vento foi amainando. Ele empurrou um pouquinho de nada o remo, até a jangada chegar na beirinha das pedras. O cheiro do mar, muito mais forte ali, quase lhe embriagou. Vez por outra o salpicado das cristas das pequenas ondas, quebradas pelas rabanadas decididas dos tubarões que ali nasciam, cintilavam na escuridão.

Quase sem poder conter a alegria que lhe estourava o peito magro, se levantou, firmando-se na jangada. Baixou então a surrada bermuda e caiu na água. O salto inesperado espantou por alguns instantes os tubarões.

Já dentro daquele mundaréu de água, sem medo, passou a movimentar de leve seus dedos, suas mãos. Realizado. Mas havia algo errado. Ou certo. Os seus dedos se encolhiam de leve enquanto suas pernas reuniam-se, bem devagar. Todo o seu corpo finalmente retornou ao mar. Ele então, bateu a sua calda na superfície, como num adeus, e nadou pra mais longe ainda da vila.

Já amanhecia. A mulher do pescador ainda estava na beira da praia esperando a jangada voltar, agarrada a sua fé e ao cordãozinho que tinha ganhado de presente dele. Tentava rezar e espantar pra bem longe a certeza de que o mar tinha levado de volta aquilo que lhe dera. E, mais ainda, tentava a todo custo espantar a certeza de que a história se repetiria com aquele menino que balançava na sua barriga já tão grande. Um menino que parecia acompanhar o movimento das ondas do mar.

8 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Humm... eu gosto de textos com essas descrições "psicológicas"... não parece, mas faz bem pra quem lê. Vc, de fato, está cada vez melhor! Um beijo, amigo!!

1:10 PM  
Anonymous Anonymous said...

tá belo e isso não mais me espanta, é sempre tudo mto bom. Uma sugestão segue no seu e-mail. Beijos? Seguem porraki e por lá

1:33 PM  
Anonymous Anonymous said...

Essa tranquilidade dissertativa é tudo que um escriba desencanado necessita, Márcio.
Não entendo de porra nenhuma, mas ler é algo que faço com gosto desde que menino sou. Alguma bagagem hei de ter.
Stay on these roads e solta um livro.

4:13 AM  
Anonymous Anonymous said...

Essa tranquilidade dissertativa é tudo que um escriba desencanado necessita, Márcio.
Não entendo de porra nenhuma, mas ler é algo que faço com gosto desde que menino sou. Alguma bagagem hei de ter.
Stay on these roads e solta um livro.

4:13 AM  
Anonymous Anonymous said...

só queria saber de ond etu tiras essas idéias loucas, porém, maravilhosas! Muito bom! Tua mente é um lugar lindamente assustador!

4:01 PM  
Anonymous Anonymous said...

Sutil Marcião, sutil. Gosto quando usa esse estilo tranquilão de escrever. Abração do parceiro engreneiro.

2:06 AM  
Blogger Zinha said...

Olha eu aqui conferindo seus textos. Adorei. Virei mais vezes com certeza.
Um xêro grande!!!

6:45 AM  
Blogger Chica said...

oi babe! quer dizer que o homem teve mesmo coragem e foi-se embora? vc não sabe o tormento dessa decisão...ahahahahhahaa!!! um xero na alma e outro atras da orelha

6:46 AM  

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