Uma noite
- Pra onde, madame?
Era de madrugada, quase. Uma dessas noites que seriam iguais às outras. Ou quase.
O taxista tinha saído de casa mais uma vez, como o havia feito tantas outras vezes. Deixou o sofá rasgado, a cama revirada, mas lembrou-se de desligar a televisão, interrompendo o apresentador do jornal bem na hora das manchetes, com um clique, e saiu porta afora.
A mulher, sozinha, parada no ponto de ônibus em frente à marquise apagada da loja de tecidos, estendeu-lhe a mão. Ele encostou o carro e abriu-lhe a porta, apertando um botão no painel do carro novo. Ela entrou, sem pressa, mas parecendo um tanto nervosa.
- Pra onde, madame?
- Só dirija. –disse entre os dentes.- A noite acabava de ficar incomum.
O taxista engatou a primeira, sentindo o toque do câmbio novinho em folha. Olhou a paisagem da rua à frente e, por um minuto, achou que estava dirigindo pra si mesmo, a caminho de um bar qualquer. Mas enfim percebeu, pelo retrovisor, o amargo perfil da sua passageira, e aterrissou de volta.
Ela parecia mais calma. Porém, ainda muito angustiada. Não tão jovem, bem vestida. Só o embrulho pardo, coberto por um saco plástico, desses de supermercado, é que destoava do conjunto.
Por um minuto ele teve alguma pena dela. O que teria acontecido? O sinal ficou vermelho e o carro foi freando, lentamente. O súbito ruído das travas das portas trouxe a passageira de volta ao mundo real.
- Desculpe, madame. Mas a senhora sabe como é. Está tarde. A gente não vive mais numa cidade segura...
A mulher não respondeu. Ficou parada olhando a paisagem correr e segurou de leve a alça do saco. Por uns instantes, só se ouviu o estalado do seu pacote esfregando-se ao outro plástico, o do banco do carro novo.
Foi só então que o taxista acordou. O que diabo uma mulher, sozinha, estaria fazendo no meio da rua àquela hora? E ainda mais carregando um pacote esquisito? Assalto. Seria um assalto. E começou a ficar assustado de verdade. Discretamente, sacou o celular do painel e o manteve na mão, com o número da polícia preparado.
A mulher trouxe o saco ainda mais pra perto de si e o taxista cravou os dedos no couro do volante. Novinho.
Outro sinal fechou e o carro parou ao lado de um ônibus. O taxista pensou, entristecido, que a última visão de que se lembraria seria a de um motorista barrigudo, velho e sonolento, indo pra lugar nenhum.
O ruído do saco plástico foi lentamente transformando-se num murmúrio, quase um sussurro, atraindo os olhos do taxista ao retrovisor.
Só então ele percebe que era um saco relativamente grande, meio arredondado pelo seu conteúdo, e viscoso. O líquido, de uma coloração indecente, já umidificava o saco plástico, o banco, e começava a pingar lentamente, nos tapetes novos do táxi. Porcaria.
O motorista aperta os olhos por uns instantes, libertando uma gota de suor que surge em sua testa. Preferia um assalto, Deus do céu, como preferia um assalto.
A passageira suspira e pede-lhe que pare. Trêmulo, ele enfia o pé na embreagem macia, depois no freio, e o carro dá um leve solavanco, como se assustado também.
A mulher pergunta, com sua voz embargada, pelo preço da corrida. O taxista diz que não foi nada, que ela pode ir embora. Que ela deve ir embora.
Compreensiva, ela abre a porta do carro e desce. O motorista, imóvel, ouve apenas o bater rápido de seus saltos altos preenchendo a rua deserta.
Rapidamente, engata a primeira e sai, aliviado como nunca. Porém, perde o fôlego e segura um grito ao notar, pelo retrovisor, o que a mulher deixou no veículo. Freia.
Ouvindo apenas o bater ensurdecedor de seu coração, levanta-se, sem olhar pros lados e abre a porta do passageiro. O líquido do saco já molha todo o banco e agora se esgueira, sorrateiro, ao chão. Imundo.
Decidido, o taxista segura-lhe pelas alças, enojado, e o arrasta pra fora do carro. Pesado. Levemente inconsistente.
Pela primeira vez presta atenção à paisagem e descobre que parou próximo a uma ponte, a um rio. Coincidência?
Ele o leva então até a beira da ponte e o arremessa, com toda sua força. O ribombar das águas sendo invadidas faz coro com seu coração. Espera ainda por alguns instantes a água acalmar-se e volta ao carro.
Teria visto algo escorregar de dentro do saco? Algo como...? Não, não viu nada. Na verdade até fechou os olhos ao jogar-lhe. Esse sim é um momento bom pra usar a sua imaginação, pensou, ao limpar a sujeira do líquido inominado. Um líquido que parecia sorrir do seu medo.
“Era um peru, desses de Natal mesmo. Um peru de Natal meio passado.”- disse um pouco alto, depois bem alto, pra que acreditasse. E sentiu-se feliz, por ainda ter mantido os plásticos nos bancos do carro novo.
8 Comments:
O que tinha no saco? Escreve a parte dois, vai lá?
Um feto, a mulher havia feito um aborto no banheior de um bar.
pedaço de um corpo ainda quente??
o que os olhos do táxista não quiseram ver??
ok!!aguardo o próximo capítulo [na fila dos doentinhos,rss]
beijosssssssssss
Sei, sei, entendi...um daqueles textos "entenda-o-que-quiser-seja-livre-pra-tirar-suas-próprias-conclusões"...bom, bom...muito bem escrito, não consegui tirar os olhos!
Quer me matar de curiosidade, seu infeliz?
Era um coração recem arrancado ou não era, rapá? Desconfio até que era o coração dela mesma...que grande metáfora.
Hehehehe
Beijo e melhoras para a sua saúde...rs
AHAHAHAHHAHAHAHA!!!! vai fazer uma continuação sim senhor! AHAHAHAHHAHA!!! Excelente. Um brinde!
Eu acho que ela era uma traficante de órgãos.
aposto que a madame era mais uma daquelas loucas que acabam de ter nenen e se perdem!!!
e ai... despeja todo o conteudo, quase que como na barriga dentro de um saco, com varios destinos, latas de lixo, portas de casas... rios...
conseguiu hein!!!
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