Sunday, August 13, 2006

Desejo


- Eu queria que você estivesse morto...
Foi o que o rapaz lembra de ter dito antes de tudo isso começar. Era uma manhã de segunda-feira, invariavelmente tediosa, e ele tinha chegado atrasado mais uma vez. Tentou ainda passar despercebido, mas foi impossível. Em uma situação normal, seu chefe o chamaria pra conversar dentro da sua sala, uma angustiante masmorra de vidro, de onde seria visto por todos os colegas e mais uma vez, humilhado, é óbvio. Mas não naquele dia.
Talvez irritado com a mulher, com o vizinho, com o filho, ou apenas cansado de ver aquele funcionário incompetente, desafiar-lhe a autoridade, chegando atrasado mais uma vez, despejou toda a sua ira ali mesmo. Aos berros, em frente a todos. Seria mais fácil despedi-lo, mas não. Um inútil como aquele ainda ia passar por poucas e boas nas suas mãos.
E assim foi feito: assim que o viu chegar, o chefe correu em sua direção fumegando como uma velha locomotiva. E despejou com o dedo em riste todos os impropérios que conhecia. Seu último erro.
Do lado de cá do dedo, o rapaz ainda assustou-se por alguns segundos. Realmente não esperava tal reação. Mas a verdade é que o medo em suas veias rapidamente foi substituído por um ódio venenoso. E ele desejou.
A coisa não demorou a acontecer. O chefe voltou pra dentro do seu aquário, ainda profundamente nervoso e até precisou tomar um gole d´água. Sentindo-se um pouco mal, tentou voltar pra casa pouco depois da hora do almoço reclamando de uma dor no peito. Caiu fulminado por um ataque cardíaco, em frente à porta do carro, ainda de chave na mão.
Ele foi o primeiro.
Naquela tarde, já dentro de seu apartamento de aluguel vencido, o rapaz ruminava seu ódio. O céu parecia responder àquele sentimento, derramando-se em água e trovejadas.
Mesmo debaixo de tanta chuva, chegou à conclusão de que não seria bom ficar em casa. Catou um guarda-chuva velho, e tocou no trinco da porta para abri-la, quando a campainha tocou.
Mirou o olho mágico e caiu dentro dos olhos do seu senhorio. Prendeu a respiração e quis ser invisível.
“Abra a porta, rapaz, eu tô vendo você!” – urrou o cobrador.
“Tô de saída” – respondeu, pateticamente.
“Não tá não. Até você me pagar você não vai pra canto nenhum...”. E cruzou os braços, num claro sinal de que estava falando muito sério.
Instintivamente, pensou no chefe. E se não fosse um acaso? E se pudesse realmente?
Antes que conseguisse prendê-lo, o pensamento escorregou-lhe do cérebro e saiu pela boca.
“Eu queria que você estivesse morto” – disse, sem sentir.
“Sim, palhaço, mas eu não estou, então...” – o tom de humor do senhorio sumiu, junto com sua voz.
E o rapaz, ainda de olho pregado na porta, viu aquele corpanzil derreter-se como um monte de esterco em direção ao chão, num baque surdo.
E começou a rir. Era verdade. Era fácil desejar. Dois problemas resolvidos num único dia.
Empurrou com dificuldade aquele monte de gordura esparramada e seguiu em direção à rua.
Fazia frio. A chuva já não caía, mas a água escorria com rapidez pelas calhas. Apertou o casaco no peito e seguiu em direção a qualquer lugar. Era tarde, mas ele não precisava mais ter medo. Nunca mais.
Andando na rua deserta, quis fumar, mas não tinha mais cigarros. Percebeu então que um carro se aproximava, diminuindo a velocidade. O homem no bando do passageiro se ajoelhou em sua direção e tentou jogar-lhe algo no rosto. Um ovo? Mas não. Não conseguiu, porque o deixou cair no asfalto gelado quando precisou apertar suas mãos ao redor do pescoço. Em busca de ar? O motorista, numa patética angústia, pediu o máximo do acelerador e quis seguiu em direção ao hospital.Quis. Mas perdeu o controle do automóvel em menos de cinco metros, encontrando um poste que se partiu na queda. É. E o carro pegou fogo. Isso. Pegou fogo. Um serviço limpo, dessa vez. E bem passado.
Mastigando um sorriso, o rapaz, seguiu pra casa vislumbrando um horizonte de possibilidades.
Mas tudo que encontrou foi a polícia, acampada ao redor do monte de banha despejado no chão da sua porta.
Perguntas foram feitas, dúvidas esclarecidas. Ninguém o tinha visto sair, nada o ligava à morte. No final, apenas uma triste fatalidade, senhor policial.
E fechou a porta enquanto ligava a televisão, satisfeito.
Foi vendo o telejornal que teve uma idéia. Daquelas bem más, como todas as idéias boas.
Fechou os olhos, balbuciando seu mantra particular.
E viu a moça do tempo vomitar uma boa dose de sangue no seu vestido de marca enquanto previa mais chuva. Não se lembrava daquela emissora ter alguma vez interrompido a programação.
Com ares de supervilão, entendeu que seu poder não tinha limites. Afinal, só o pensamento é verdadeiramente livre, não é mesmo? E ouviu o telefone tocar.
Sua mãe. Notícia terrível. “Seu pai.”- traduziu entre soluços.
“Seu poder não tinha limites.”
Angustiado, deixou o telefone cair.
- Eu queria estar morto – desejou, numa enxurrada de remorso.
Do outro lado da linha uma voz de mãe ainda chorava, premonitiva, chamando inutilmente pelo filho.
Só em pensamento somos verdadeiramente livres.








17 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Tô quase sem palavras. Mas dá pra dizer que é maravilhoso. Ainda precisamos conversar sobre o tema. Me identifiquei demais com o protagonista. Vê se escreve meu nome certo nos créditos, viu? :)

12:58 PM  
Blogger Crica B said...

Muito legal e criativo. Adorei.

5:32 PM  
Anonymous Anonymous said...

Depois dessa constatação nunca mais meus pensamentos serão os mesmos.
Que poder heim?
boa semana querido,
beijossssss

7:16 PM  
Anonymous Anonymous said...

Eu não sei porque você alopra desse jeito...é de sacanagem, né?
Pois eu queria que você estivesse rico...rs
:P

11:11 PM  
Anonymous Anonymous said...

Olá!

Eu sou A Outra e vim aqui te dizer que O Outro é muito enrolado e não conseguiu se decidir numa abordagem ideal para o nosso "Projeto Experimento: Um Blog Metalinguístico". Eu disse que não existe uma abordagem ideal, mas, sabe como são os homens, né? Então o deixei falando sozinho e estou aqui te convidando para conhecer nosso blog!

Apareça!

A Outra.

1:03 AM  
Blogger Chica said...

eu queria uma casa de frente pro mar. e comer comidas deliciosas sempre.eu queria conhecer a america central, a africa e o japão. eu queria ganhar muito dinheiro fazendo o que gosto. e queria também ter um filho de cada cor: negro, branco(esse eu já tenho), caboco, mestiço...eu queria que os americanos e qualquer povo ou pessoa que se sentisse superior em relação a outra diminuísse gradativamente.

5:37 AM  
Anonymous Anonymous said...

Pô. O nome do cara é Zeus? Mais um bom texto pra coleção de suspenses do Márcio. Valeu. Abrs.

3:01 PM  
Anonymous Anonymous said...

Você sabe que está ajudando a mudar e construir nosso "Projeto Experimento: Um Blog Metalinguístico"? Pois eu vim te avisar que sim, e te agradecer... Obrigado!
O Outro

12:07 AM  
Anonymous Anonymous said...

Do outro lado do dedo, mastigou um sorriso e outros tantos detalhes sublimes em meio ao luxo. É como procurar diamantes no meio das pérolas. Ben, tá foda! Sinto-me como aquele menino do ginásio da escola que era bonzão só na hora do recreio, porque na saída, quando sua turma se misturava à de todo o colégio, ele se sentia um nada.

12:43 PM  
Blogger Santos Passos said...

Beleza, Márcio. Beleza. Só pra encher o saco: eu tiraria a última frase.
O conto é impecável. Ou extremamente pecaminoso, sei lá.

8:17 PM  
Blogger Ana Carla said...

Querer é poder, já diz o velho deitado. Quero coisas boas, e um conto falando de Vida. Seus textos são sensacionais, Moço! Beijo!

5:00 AM  
Anonymous Anonymous said...

Quem foi o filósofo que disse algo como "vocês podem me matar, mas não podem me impedir de pensar o que penso"?

Será que um dia a tecnologia vai ser capaz de ler o pensamento das pessoas?

Áí sim, seria o verdadeiro e completo regime totalitário.

Nós podemos pensar o que quisermos. No dia em que isso não for possível, será o caos.

Parabéns pelo conto!

5:49 AM  
Anonymous Anonymous said...

... é o pensamento ... de fato somos livres ... mas por vezes também podemos nos tornar escravos dos nossos próprios pensamentos ...

6:47 PM  
Blogger b.ponto said...

eu ja tive um poder parecido.
eu pensava: '- quero arrotar!'
... e conseguia.

... hj em dia, nem preciso pensar mais nada. os gases dominam!

ficou dez, vei!

b.

1:31 PM  
Blogger Camila Fernandes said...

Wow!

Delícia de texto.

Já pensou se a cada vez que odiássemos...?

10:00 PM  
Anonymous Anonymous said...

Cool blog, interesting information... Keep it UP Interior designers scholarships Land rover frame rust Music scholarship and university

5:32 PM  
Anonymous Anonymous said...

intiresno muito, obrigado

9:02 AM  

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