Tuesday, June 20, 2006

Mensageiros



"Não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo!"
Qual o teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo
E o Corvo disse: Nunca mais."
Edgar Alan Poe - O Corvo



- Ela está mal.
Com um olhar derrotado, mas ainda serena, a minha irmã procurava me tranqüilizar. Mas era inútil. Mamãe morreria hoje.
Foram meses de hospital. E hoje recebi uma ligação de madrugada. Uma daquelas ligações das quais sempre fugimos. Realmente feitas para uma madrugada.
- Eu vou ligar pra funerária, acertar os detalhes.
Acertar os detalhes. Sei que ela não tinha culpa, mas odiava o modo como aquilo me soava. Ouvi o barulho da porta batendo e me virei para a luz da janela.
Havia um corvo empoleirado na árvore grande do pátio. E me olhava.
Sacudi a cabeça por alguns instantes. Não. Aquela definitivamente não era hora de enlouquecer.
Procurei prender minha atenção a qualquer coisa dentro do quarto, mas era inútil. Sim. Minha mãe morreria hoje. Sem dor? Como poderiam saber? O médico pode me garantir?
Sentei-me na cama e experimentei o colchão. Leve, mas firme. Num clarão, vieram-me à cabeça algumas memórias da infância. Da minha mãe ainda saudável, brincando conosco, como numa propaganda de seguros.
Busquei outra vez o refúgio da janela.
Na árvore, havia agora dois corvos.
Apertei os olhos em direção aos galhos e confirmei a suspeita. Dois. Firmes e dignos. Um ao lado do outro.
Sorri da minha própria idiotice. Era incrível como a mente nos prega peças. Aproveita-se dos nossos momentos de desespero, como um agiota particular.
Angustiado com a certeza, tentei manter as lembranças boas por perto, aos meus pés, como um cão, mas era impossível. Tudo que me vinha à cabeça era a imagem da minha mãe doente, sem cabelos ou dignidade, já magrinha. Deitada sobre a cama do hospital.
Tomei um gole da água morna deixada em cima do criado-mudo. Não consegui evitar sentir um pouco de nojo. Água morna tinha gosto de mijo. Não que eu já tivesse bebido mijo, mas...
Agora eram cinco.
Por mais que fosse difícil de acreditar, havia agora cinco pássaros negros na árvore. Cercando aquele quarto de hospital?
Respirando aos solavancos, empurrei com força a janela e, sem pensar, atirei o que estava a minha mão. O copo se partiu em vários pequenos cristais de vidro, que brilhavam, quase coloridos, à luz do sol.
Não, miseráveis, vocês não vão levar a minha mãe.
Mas os corvos estavam decididos, ergueram-se um pouco ao estrondo do copo e depois voltaram as suas posições. Como bons soldados.
A porta abriu-se de repente. Era a minha irmã de novo. Com lágrimas nos olhos, era de novo a menina de maria-chiquinha nos cabelos que costumava brincar comigo.
- Mamãe morreu.- disse, entre soluços.
Nos abraçamos por alguns instantes.
Do lado de fora do quarto, dez corvos alçaram vôo em busca do céu, levando de volta o que agora lhes pertencia.

7 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Nossa, Márcio! Que lindo! Belíssimo o texto =) Parabéns!

5:12 AM  
Blogger Chica said...

quando eu morrer, são as araras que me levarão. ainda bem que estou lendo isso a tarde. uahahahhaha!!! você é o poeta dos defuntos, das milacrias, dos gritos engulidos de susto e agonia.

1:20 PM  
Anonymous Anonymous said...

Verdadeiro sacode.
Que venham os inevitáveis corvos e nos permitam os abraços.
Ótimo dia,
beijosssssssss

7:56 AM  
Anonymous Anonymous said...

A emoção do texto me faz fugir para o humor, pensando que - quando for eu - preferiria ir com balões coloridos.

9:14 AM  
Blogger UmZé said...

Fala Marcio,
estou gostando desses textos próximos do fantástico.

5:26 PM  
Anonymous Anonymous said...

Tô com o Ordisi... na minha hora quero balõezinhos com smileys amarelos!

7:55 PM  
Anonymous Anonymous said...

Really amazing! Useful information. All the best.
»

3:27 PM  

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