Wednesday, March 08, 2006

1968


"Apesar de você, amanhã há de ser outro dia."
Chico Buarque






A mulher estava sentada em frente ao portão de desembarque do aeroporto. O retorno de seu marido lhe parecia tão improvável que ela já havia acalentado a idéia de sua morte. O telegrama recebido um dia antes, trouxe-lhe à tona um turbilhão de lembranças há muito esquecidas. A prisão. O exílio. A promessa de volta. A espera sem fim. Até hoje.

O avião aterrissou, barulhento, e ela arrancou os óculos escuros jogando-os dentro da bolsa. Os olhos, fixos na escada de desembarque e secos de tanto chorar, já não esboçavam nenhuma reação.

Os passageiros desceram um a um. Uma mulher gorda. Um senhor grisalho. Antônio. O sorriso de alívio há tanto tempo guardado iluminou-lhe o rosto quando ela viu seu marido descer. Espantosamente com o mesmo rosto. Parecia não ter envelhecido um ano sequer desde que se foi. Ele também a viu e sorriu. Desceu as escadas correndo, esbarrando no senhor grisalho, na senhora gorda. Largou as malas no chão e abraçou-se à mulher. Ela sentiu as pernas bambearem ao tocar-lhe a pele, ao beijar o seu rosto.

- Eu não prometi que voltava? - falou, num sorriso, enquanto a mulher, muda, levou-o até o carro pelo braço, como uma criança satisfeita.

O dia passou num susto, como sempre passa nos momentos de felicidade. A mulher não pediu explicações ou esclarecimentos. Apenas procurou aproveitar cada momento daquela presença tão esperada, quase desistida. Bem mais tarde, na cama, depois de uma tão sonhada noite de amor, o marido explicou-lhe que precisava ir embora no dia seguinte. A mulher ainda tentou protestar e levantar-se, quando ele sacou do bolso da calça , jogada em cima do criado-mudo, um papel dobrado e o estendeu à sua esposa.


***
O escritório do ex - delegado ficava no centro da cidade. Um ótimo esconderijo para aquele que tinha sido um dos mais cruéis servidores da ditadura. As inúmeras atrocidades do seu passado foram lavadas com o cargo de chefia em uma ONG conceituada. Ajuda humanitária. Ele nunca sorria da ironia da situação, já que parecia ter se esquecido do seu passado. Cada novo dia de trabalho parecia apagar as feridas causadas pelos choques elétricos, pelas surras de toalhas molhadas e corpos escondidos, muitas vezes no quintal de cimento da própria delegacia.

A porta de vidro bate então com força e um homem alto, de bigode, invade a sala:

- Quem deixou o senhor entrar? - perguntou o ex-delegado.

- Não se lembra de mim, Doutor? - os olhos do homem eram opacos.

O passado voltou-lhe em um único e poderoso flash.

- Isto não está acontecendo.

- Eu te pedi, Doutor. Eu implorei.Você sabe que nunca tive culpa de nada.

A porta fechou-se com um golpe, abafando o som daquelas últimas palavras.

Quem passou pela rua naquele momento pôde ouvir um grito seco e desesperado de alguém que pedia para não morrer.


***
A esposa, nua na cama desde a noite anterior, lia sem parar o papel em suas mãos. Uma folha única. Amarelada. Dobrada ao meio em várias partes. O atestado de óbito de seu marido.

4 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Cada vez melhor e eu, cada vez mais estupefata.

6:05 PM  
Anonymous Anonymous said...

Excelente, Márcio.

[1968 foi um ano de lutas. O mundo colocou belos ideais em prática.

Hoje fico triste vendo tanta gente irresponsável jogando fora o conceito de democracia (justiça) pelo qual tantos de nós lutaram.]

10:33 PM  
Anonymous Anonymous said...

el justiceiro tcha tcha tcha!

7:12 AM  
Anonymous Anonymous said...

Márcio, não sei se entendi, mas o marido era o homem de bigode que voltou só pra se vingar, depois fugiu e se fez de morto graças ao atestado antigo? Acertei?

8:58 PM  

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