Friday, February 10, 2006

Temos vagas


Encostou a cabeça de leve no vidro do ônibus e sentiu a vibração da janela espalhar-se por todo o seu rosto. O relógio grande da praça borbulhava trinta e oito graus e ele estava muito cansado. Cansado demais. Puxou a tampa da bic vermelha com os dentes e a empurrou no fundo da caneta. Apoiou com dificuldade os classificados do jornal nos joelhos e continuou a procurar.
Passou os olhos pelas colunas mais uma vez e ainda não encontrou nada. Os anúncios pediam experiência, mas também limitavam a idade em até vinte e cinco anos. Na sua cabeça, experiência e vinte e cinco anos de idade eram coisas opostas. Mas talvez ele já estivesse velho demais para opinar sobre isso, afinal. Limpou o suor da testa e retornou à sua busca.
Subitamente, parou o olhar sobre um anúncio disposto no canto esquerdo do jornal. "Temos vagas". Procurou alguma limitação. Idade. Sexo. Cor. Nada. Checou o endereço. Estava bem próximo.Fez vários círculos vermelhos ao redor daquelas palavras. Para dar sorte.
Levantou-se rapidamente e pediu parada. Passou com dificuldade pelos outros passageiros e alcançou a porta de saída. O vento quente bateu em seu rosto e ele sentiu-se esperançoso pela primeira vez em muito tempo. Atravessou a praça muito rapidamente, procurando o número do prédio. Esbarrou numa construção antiga. Meio escondida. Muitas vezes estivera nos arredores daquela praça, mas nunca tinha notado o local, apesar da sua imponência. Procurou um automóvel por perto e arrumou os poucos cabelos pelo reflexo do retrovisor. Tentou não notar a sua cara de enfado.
Receoso, entrou no prédio. As marcas de infiltração serpenteavam pela parede de pintura gasta. Tirou o jornal dobrado de dentro do bolso e procurou pelo número da sala. Percorreu um corredor escuro ouvindo apenas o bater dos seus sapatos no piso de madeira. Teve muita sorte de encontrar o local, pois não havia ninguém para ajudá-lo. Na verdade, não havia ningúem mesmo no prédio. Ele culpou o horário de almoço.
Finalmente parou em frente ao número certo e, por alguns instantes, sentiu-se participando de um deprimente programa de auditório. Segurou na maçaneta da porta, respirou fundo e abriu. Ao entrar, já havia alguém sentado no bureau de madeira, encarando-o. "Estávamos esperando por você" — disse. Ele entrou e sorriu, fechando a porta atrás de si.
Seu grito ecoou pelo prédio vazio. Definitivamente, era hora do almoço.
***
O papel voou rápido, atingindo o rapaz em cheio. Só quando ele o arrancou do rosto, notou que era um pedaço de jornal. A página dos classificados. Abriu por curiosidade e viu um anúncio destacado em vermelho. "Temos vagas" — dizia. Procurou alguma limitação e não encontrou. Sorriu. Talvez aquela fosse a chance de sua vida.

8 Comments:

Blogger Ordisi Raluz said...

Márcio entrou na era dos tempos cíclicos com brilhanteza. Gostei pacas.

[Acho que um dia desses vou levá-lo a passear com o Gerador de Certeza, hehehe].

Abração.

7:57 AM  
Anonymous Anonymous said...

menino, que onda, me disseram que era assim que tavam roubando órgãos humanos por aí. uahahahhahahahahahhaa!!!!! Que meda! vai tu procurar emprego!

8:16 AM  
Anonymous Anonymous said...

Tem algum tema sobre o qual você não consiga escrever algum conto mirabolante? Acho que não

4:11 PM  
Anonymous Anonymous said...

Muito bom! Aos contos e barrancos, no espaço a passo, os curtas vão se construindo (ou se desconstruindo) na metragem da barra de rolamento rolando na mente!

6:03 AM  
Anonymous Anonymous said...

Talvez fosse a hora do almoço e ele fosse a refeição tão esperada...
Fantástico conto!
lindo dia
beijossssssssssssss

8:57 AM  
Anonymous Anonymous said...

O bom de um conto bom como esse é que nunca acaba. Eu babei.

2:10 PM  
Anonymous Anonymous said...

Talvez aquela fosse a chance da sua vida "acabar"...hahaha. Homi, o cabra recebe um sinal dos céus e ainda vai lá conferir? É lesado ou o que? Hahahaha! Parece o Homer Simpson...rs.
Oooop!

6:12 AM  
Anonymous Anonymous said...

Adorei a cena final..... não tão "final" assim..... :)

7:08 AM  

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