Wednesday, April 26, 2006

Último instante


Era noite. O casal, já velhinho, passeava de braços dados sob um céu que esfriava rapidamente. Assim juntos, eram como dois rochedos que, sem saber porquê, tinham se encontrado no meio de um mar revolto. E assim completos passeavam, sem receio, por entre uma praça vazia e potencialmente perigosa, pois sabiam-se fortes. No meio daquele lugar eram como os postes e os bancos, as árvores e o lixo, parte da paisagem.
O que ninguém sabia, nem eles mesmos gostavam de pensar muito tempo no caso, era que não se suportavam no sentido mais clássico da palavra. Os quase cinqüenta anos de prisão estavam matando a golpes de machado o que sobrava de autêntico, dentro de cada um deles. Quantas vezes o velhinho não acordou em pé, ao lado da mulher, segurando de forma ameaçadora o travesseiro perto de sua cabeça, mas desistindo no último instante? Que a velhinha já pensou seriamente em despejar sabonete líquido no piso de borracha que cobria o chão do chuveiro? Toda vez que ela sorvia, lenta e irritante, o chá da xícara, produzindo um chiado insuportável, ele crivava os dedos por baixo da toalha da mesa, procurando evitar que a sua mão enrugada encontrasse a faca de partir queijo, jogada em cima da mesa. Quando ele limpava o pulmão, escarrando na pia da área de serviço e recostando a cabeça embaixo da torneira, era à velhinha quase, quase incontrolável o desejo de segurar-lhe os cabelos brancos naquela posição até que não houvesse mais ar. Só paz.
A velhinha esfregou as mãos e o velho, instintivamente protegeu-as por entre as suas, aquecendo-as. Ela sorriu um sorriso aéreo, perdido em divagações. “Um centavo por seus pensamentos”. Pediu o velho. “Melhor não”.Respondeu ela.
Assim juntos, perdidos numa noite deserta, eram como dois rochedos que tinham se chocado no meio de um mar calmo. E seguiram, por entre a praça, a caminho do que sobrara de seu futuro.

13 Comments:

Anonymous Anonymous said...

ai que eu tenho medo de meus próprios pensamentos. ai que eu tenho medo mais dos teus que dos meus. inda bem que vc desabafa escrevendo. ou entao eu esconderia todas as facas de minha casa.

um xero enorme.
hummm... eu gostei muito desse.

9:18 AM  
Anonymous Anonymous said...

Coisa trágica, Márcio. Mas uma quasi-tragédia muito bem sacada, sô.

Abração.

8:59 PM  
Anonymous Anonymous said...

Lindo, Ben, lindo e verdadeiro. Comovente. Beijos

3:52 AM  
Anonymous Anonymous said...

Putzzz,real,sentimento diário na vida de velhos parceiros dependentes até desses pensamentos.
lindos dias,
beijosssssssssssss

11:51 AM  
Blogger Marina said...

Belo texto, Márcio! Essas vontades que chegam e passam, para então prevalecer o amor... Um casal de velhinhos desses passando pela praça é uma coisa bonita de se admirar... ;)

De vez em quando escrevo uns textos tb no
http://e-digitais.blogspot.com/

Inclusive o seu texto me fez lembrar um meu de uma velhinha caminhando na praça. :P

Enfim, beijão!

6:58 PM  
Anonymous Anonymous said...

Nossa, seu site me fascina...
Minha mãe descobriu ele por um outro blog acho, não sei direito, mas só sei que me fascinei com as histórias, putz, tu é muito bom.
Tenho 14 anos, na primeira vez que entrei não me interessei muito, pq num curto muito histórias amedrontadoras, hehehehe, mas depois tomei coragem(rs), e li a história "Verde, cor de cana".
Ai percebi que era bom, po, continua assim, ja li todas as suas postagens, ta muito legal, muuuuito apavorante, gostei bastante da "Adormeça".
Putz, quando fui drumi, pelo amor de Deus, pensei que era a menininha, rs, e fiquei cagano nas calça, rs...
Outra apavorante é a "Abra os Olhos", aquilo sim é apavorante, me imaginei aquele cara la...rs
A-M-E-D-R-O-N-T-A-D-O-R seu blog
ta de parabens... E estarei sempre comentando ai, flw.

7:17 AM  
Blogger Santos Passos said...

Que velhinhos meigos.

9:23 PM  
Blogger b.ponto said...

ai ai...
quero um companheira assim...
por toda a eternidade.

ab.
b.

7:39 AM  
Anonymous Anonymous said...

Fazia tempo que não vinha por aqui... É sempre bom, é sempre dom... Essa densa dança das palavras nem sempre amigas... E entre o triste e feliz, o rude e o delicado, o dedo em riste resiste: "envelhecer é ainda a única maneira de nos mantermos vivos por mais tempo".

4:50 AM  
Anonymous Anonymous said...

alou? vou ter que ficar esperando qto tempo mesmo?

6:15 AM  
Anonymous Anonymous said...

Passei pelos Poetas elétricos...avistei a sua "casa", embora sem convite, entrei.
Adorei !"moro" bem perto...e por favor entre sem bater!
Beijos poéticos!
Tereza Amaral

9:46 AM  
Anonymous Anonymous said...

Hmm I love the idea behind this website, very unique.
»

2:39 AM  
Anonymous Anonymous said...

Greets to the webmaster of this wonderful site! Keep up the good work. Thanks.
»

3:27 PM  

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