Saturday, May 13, 2006

O vento *


“Me diga, por favor, adonde se escondeu o meu amor”





- Nem lembro mais o nome dela.

O bêbado dizia, meio mastigado, enquanto tilintava o gelo dentro do copo de uísque. O mais barato. Pago por mim.

- Mas o quê que tem, né? Eu lembro do cabelo, do corpo, do vestido, do jeito que ela andava. Um jeito meio assim, sabe? Um jeito de quem não pisa no chão, como se não devesse...

E toma o resto do uísque numa virada só.

-...não devesse nada a ninguém. Bonita demais. Só você vendo pra acreditar.

Dentro do bar só restavam ele e eu. O dono andava entretido, enxugando uns copos molhados. Mas era uma cidade de interior, e eu tinha certeza de que ele estava ouvindo cada palavra.

- Chegou aqui por acaso, rapaz, e foi morar sozinha! Diga aí! Foi morar sozinha lá pras banda do rio.

“Mas não tem casa lá.” – retruquei, um pouco contrariado comigo mesmo. Tinha medo que ele desistisse da conversa.

- Não tem agora. Botaram abaixo. A cidade toda derrubou. Depois cobriram com sal.

Lembrei-me de Tiradentes. E de que já tinha visto mesmo perto do rio algumas ruínas amontoadas.

- Começou a ganhar a vida sozinha. Plantava e colhia. Sozinha. Vez por outra aparecia pra vender. Era engraçado, rapaz. Ninguém comprava. Ela descia o morro carregada de verduras...linda...lindas, só você vendo. As verduras mais bonitas daqui. Tinha pra ninguém não. Mas voltava com tudo lotado. Ninguém comprava. Aí ela começou a dar. O que juntava de mendigo na beira da barraca dela...Dava tudo. Voltava pra casa só com os cestos. E na outra semana, do mesmo jeito. E na outra, e na outra.

Os olhos deles se perderam na janela. O dono do bar já não fingia mais sua surdez.

- Começou com Mané Negro. Acho que era o vagabundo mais doente daqui. De todos. Tinha umas perebas pelo corpo que davam medo só da gente olhar. Passou uma semana comendo do que a moça dava e ficou bom. Sarado, sarado. Chega dava gosto de ver. Depois foram os outros mendigos. Ganharam uma saúde no corpo, menino. Alguns começaram a trabalhar pra ela. Outros saíram da cidade em busca de emprego. Pedir não podiam mais, né? Não daquele jeito.

Estava ficando tarde, a lâmpada do poste já se cobria de mariposas. Algumas mais afoitas, morriam, fritas no calor.

- De repente todo mundo queria o que a coitada trazia pra feira. Derrubaram a barraquinha, roubavam dela. Começou até uma história de novena na porta da casa da mulher! Toda quinta.

O bêbado suspirou um instante, como se estivesse se lembrando de algo. Jogou o resto do gelo na boca, ainda com algumas gotas da bebida.

- Aí veio o menino morto. Acharam um inocentezinho na beira do rio. Disseram que foi ela. Correram pra casa da coitada no começo da noite, rapaz. Só você vendo. Cada um com um pedaço de pau maior que o outro. E pedra. O padre tirou ela de dentro de casa pelo cabelo, jogou no chão. E bateram. Ninguém perguntou pelo menino morto. Fizeram que não viram a barriga dela grande. E bateram os paus nos ossos dela e bateram as pedras na cabeça dela. No fim, num tinha quem reconhecesse de jeito nenhum. Tinha cabelo nas pedras, rapaz, cabelo. E sangue. A cabeça era uma pasta. Viraram as costas e começaram a descer pra cidade.

Os olhos do bêbado eram duas fornalhas, cheias d´água.

- Nem bem o povo começou a descer, ele veio. Uma coisa incrível, só você vendo. Um pé-de-vento assim forte, como a gente nunca tinha visto na cidade. Comeu casa, arrancou telha, o sino da igreja foi parar longe, longe...Os pedaços das paredes, do mercado, da praça voando por cima do povo. Dos que subiram o morro não sobrou ninguém. Ninguém. Dos que ficaram na cidade, acho que foi até pior. Tiveram uma merda de vida triste, daquelas que nem vale a pena. Namorado morreu, doença comeu. Sobrou quase ninguém pra botar a cidade pra cima de novo. Valia a pena não.

Agradeci ao bêbado, me despedi do dono do bar e fui, caminhando pra porta. O bêbado grita.

- Era ela linda, doutor! E boa! Cuidou de mim, doutor! Cuidou de mim quando eu fui lá. Foi só uma vez, doutor. Mas eu esqueço mais é nunca...

Assenti com a cabeça e cruzei a porta enquanto ele murmurava algo sobre a criança que a mulher carregava na barriga. E chorava.

Do lado de fora mais mariposas morriam na lâmpada. Elas nunca aprendem, não é mesmo?

Só então eu percebi, logo atrás de mim, um doce, mas forte, pé-de-vento. Com cheiro de feira.

*TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO EM WWW.BLOGRENAGEM.BLOGSPOT.COM. UMA REVISTA VIRTUAL COM TEMA MENSAL E CHEIA DE TALENTOS! CONHECE NÃO? TÁ ESPERANDO O QUÊ?

6 Comments:

Blogger Marina said...

Arrepio do doce vento...

Lindo texto!

12:09 AM  
Blogger renatamar said...

Que legal essa idéia do blog 'Engrenagem' de dar um tema para vários autores escreverem .. E qnt mistério nesse seu texto, hien? ..

>> Queria colaborar com uns versos pro tema desse mês, será que rola?

abs,

7:19 AM  
Anonymous Anonymous said...

Agora eu entendi o que quis dizer quando mencionou que colocou tudo. Deu até um pouco de aflição porque eu não tinha sentido nada....ahahhahaha

12:57 PM  
Blogger Chica said...

dá pra contar uma coisa feliz aqui nessa budega? ou todo mundo tem q morrer? oras!!!!

7:14 PM  
Anonymous Anonymous said...

Your are Excellent. And so is your site! Keep up the good work. Bookmarked.
»

2:39 AM  
Anonymous Anonymous said...

Your site is on top of my favourites - Great work I like it.
»

3:27 PM  

Post a Comment

<< Home