O terminal
O solavanco do cano frio da poltrona bem na minha testa fez-me abrir os olhos turvados de sono e eu vi se formar lentamente a figura de um cobrador.
- Senhora? A senhora precisa descer.
Tinha subido naquele ônibus pra me esconder da pior tarde da minha vida. Precisava sair correndo do meu apartamento, pra não morrer de desgosto, e acabei entrando no primeiro que apareceu.
- O senhor me desculpe, eu acho que acabei...
- A senhora precisa descer. Agora.
-...dormindo.
O tom de voz dele conseguiu ao mesmo tempo atiçar a minha curiosidade e me assustar. No cara ou coroa, o medo perdeu.
- Por quê?
- Tá indo pro terminal.
A coisa acabava de passar de curiosa a engraçada. Qual o problema de ir ao terminal? Fico quietinha aqui, moço, juro. Mais tarde, quem sabe, um bom café ruim, um papo leve pra esfriar a cabeça, e depois...O depois a gente vê, certo?
- A senhora desce no próximo ponto, antes do terminal.
- Mas por quê?
- No próximo ponto.
E me deu as costas. O filho da puta simplesmente me deu as costas, acredita? E eu sem dizer nada. Paradinha, olhando os sapatos dele irem embora, tomando o rumo daquela cadeira tão alta, que eu achava linda quando criança.
A pior tarde da minha vida teve despejo, desprezo, desgraça, enfim. Será que consigo outras letras “d”? Sim, “d” de dúvida. Meu Deus, acho que tô ficando louca. “D”, de dúvida.
O cobrador abaixou-se e falou algo ao motorista. Eu não ouvi, porque o ruído estridente da rua abafou o som da sua voz.
Só vi que ele apontou. Direto pra mim.
Mas o motorista, de olhos na estrada, apenas sacudiu a cabeça, decepcionado. Olha aí. Mais um “d”.
Até que meteu o pé no freio.E parou num ponto de ônibus deserto, mas estranhamente acolhedor. Como uma caixa vazia de panetone que a gente encontra depois do Natal, sabe como é?
Num golpe surdo, a porta se abriu. E o cobrador me indicou a saída.
- É a última, dona. Por favor...
- Não é a última.- disse – Fico no terminal.
- A senhora não pode.
-Claro que posso.
- Senhora...
- Fico no terminal.
Submisso, o cobrador chegou-se ao motorista. Parecia explicar a situação. Ele apenas sacudiu os ombros. Realmente não estava lá muito aí pra mim.
Então a porta fechou-se mais uma vez e seguimos viagem. Juro que quase ouvi as fundações daquele ponto gemerem, lamentando a minha ida.
Quando chegamos ao terminal, rapidamente me decepcionei. Tanta confusão por nada. Uma simples parada final. Escura e potencialmente perigosa.
Perguntei se podia ficar no ônibus. Só que não havia mais cobrador pra responder. Na verdade não havia mais ninguém.
Mas então a porta se abriu, pela última vez, e eu vi a minha avó subir os degraus, naquele seu igeiro passinho e sentar-se ao meu lado. E depois meu avô. E minha gata. E meu primo Zeca. E mais uma pá de gente que eu não via fazia tanto tempo.
Não via porque já andavam todos do lado de lá.
Não, não gosto dessa palavra, fala não. Acho tão fúnebre.
Com o ônibus cheio, retornou o motorista, dessa vez de cabeça baixa. E partimos.
Curiosa, eu percebi que ele me olhava pelo retrovisor. Na verdade, olhava era modo de dizer, porque ele não os tinha. Não tinha nada dentro do buraco dos olhos.
Ao meu lado, senti o inconfundível peso de uma cabeça descansando no meu ombro. Mas ao invés daquele cheirinho de talco de avó, que eu tanto amava, senti foi um enojado odor de jasmim e cravo, e terra úmida.
Foi nesse momento que virei o rosto pra janela.
E choveu.
“A gente não precisa saber de tudo, não é mesmo?” - pensei, enquanto desenhava, no vidro embaçado, um grande “d”.
De destino.
18 Comments:
BÁR-BA-ROOOOOOOOOOOOOOOO !!!
beijo da Ro
Determinada desafiou destino desiludindo-se diante desassossego desesperado[da morte]
Uau!
Doravante continuarei falando de amor,rs
Lindo findi
beijosssssssss
Nossa!
Muito bom, Márcio!
Um dia chegaremos ao terminal... :)
Beijos!
ai, que texto PERFEITOOOO!
so acho que li na hora errada hehe, sozinha nessa madrugada escura. me deu um frio na barriga!!! hehehe
detalhe que do meio pra o final comecei a sentir medo, queria parar de ler mas o texto ja havia me conquistado, nem consegui. ainda bem, valeu a pena! :)
beijocas e bom domingo!
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ó, volto amanha de dia pra ler tudo. hehehe
*** sou boba!
beijos
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uau!
cinematográfico, meu caro!
Pra variar, perfeito.
É... a gente não precisa saber de tudo. E a caixa de panetone ficou linda. COmo lindo ficou seu texto. Beijão!!
oi senhor que mata todo mundo, já reuni a equipe, vamos marcar a primeira reunião. vc nem foi a premiere do beco, né? hunf! depois vai ter uma sessionzinha em mi casa,tá? xeroca.
a bichinha, ainda teve chance de descer, mas ficou. uma certeza quase suicida.
Cara, muito bom mesmo. Esse lance de o sobrenatural dar as caras de uma hora pra outra, quando menos se espera. Muito bom mesmo. e também tem conto novo lá nos contos bregas. Falows!
caralho...
(cara, eu ia ate escrever mais alguma coisa. mas vou deixar aqui, apenas, a primeira coisa que falei assim que terminei de ler o conto. e pronto!)
Márcio eu diria que conheço esse seu conto. Mesmo se não for o caso, considero-o como já fazendo parte do seu livro.
Abraços.
Gostoso... chuva e gente querida.
Ah, sinistro também.
Após vergonhoso atraso de várias semanas, consegui finalizar o capítulo 6 de "O Sabor das Primeiras". Pra eu não ficar aqui dizendo o que tem e o que não tem nesse capítulo, passa lá no Demo e leiam, que é mais prático, limpo e bonito, eheh.
http://www.demosentado.blogspot.com
Beijos, abraços, apertos de mão!
Essas suas viagens de ônibus me matam, se é que me entende.
nossa!!! nunca pensei que terminaria assim ...
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