E além
Dentro do bolso, as pedras chacoalhavam. Na mochila outras, maiores, dormiam sossegadas, mas vigilantes, como é comum às pedras.
Ainda assim sentia os solados a pequenos centímetros do chão. Pequenos. Mesmo imperceptíveis, se andasse rápido. Como fazia agora.
Resignado, sentou-se no banco da parada de ônibus, agarrando firme os dedos no frio do cimento.
Até que se viu sozinho, e, quase por brincadeira, deixou a gravidade erguer seu corpo à quase um palmo do chão.
Perdido naquela sensação, permitiu que as pedras rolassem dos bolsos, e, à medida que se erguia, abriu a mochila, largando a maior delas ao chão.
E subiu.
Como acordando de um sonho bom, sofreu um lampejo de racionalidade e procurou agarrar-se ao teto da parada com a ponta dos dedos.
Mas tinha chovido, e a água escorregou nas suas mãos.
E o vento.
Sem outro remédio, livrou-se da mochila, dos tênis, da calça.
Ocupados com relatórios e almoços e relógios de ponto, as pessoas não perceberam. Mas ele subiu. Seguindo rápido em busca do azul, até se tornar um ponto negro.
Já em cima, foi confundido com um satélite, um avião. Foi confundido com uma estrela.
Sem conseguir retornar ao chão, ainda sobe cada vez mais alto naquela estrada infinita.
Sem conseguir retornar ao chão, o corpo já definha.
Morrerá amanhã sem água ou comida.
Mas feliz.
7 Comments:
Feliz to eu e fico sempre assim qdo te leio, besitos e saudades
Eu estava fazendo esta reflexão justo hoje:
Gosto quando o texto leva o leitor para um lado e só depois ele fica sabendo que o lado certo era outro. aí o leitor tem que reinterpretar o que já lera, com novo viés.
Este efeito é muito bom. Nesse conto, o rumo certo ainda não estava muito evidente antes da palavra gravidade.
Mas depois que li gravidade, adorei reler o início do texto, já com outro viés.
Parabéns!
hihii...
p
u
t
a
merda...
fenomenal.
leve, leve ele morreu
beijosssssssss
Ah... eu também quero flutuar! Como um anjo pornográfico.
Parabéns, profissa. Mais um excelente texto. Quando veremos um livro só teu?
Antes fosse eu.............. Sem lastros ou amarras. Firme.
Amore, não sei se as coisas caminham num tempo certo, não sei, talvez. Você me avisou quando escreveu, mas só hoje pude lê-lo. E que deliciosa artimanha de Iroku de justo hoje estar degustando os cd's de Maria que chegaram.
Lembrei do menino da luz e de uma animação que vi de um menino que também flutuava, esqueci o nome...são as drogas.
Beijos.
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