A praga
“Ah, que saudade que eu tenho da aurora da minha vida”
Casimiro de Abreu
Casimiro de Abreu
Sorridente como uma boneca de feira, a menina estava rígida. Feliz, com aquela saudável tensão das crianças envergando roupas novas.
- Linda – foi o que disse a tia, de joelhos à sua frente – Deixa só ajeitar o laço.
Mas não estava ela referindo-se ao laço da menina, mas aos laços das cordas que atavam as mãos da criança.
Passando os olhos pela sala, recapitulou de leve o necessário.
Corda e mala. Simples assim. Corda, mala e vestido amarelo. Sim, um vestido bem amarelo para reter em suas fibras a força dos maus espíritos.
A pequena era uma bruxa.
Desde que chegou ao vilarejo, trouxe consigo toda uma sorte de malefícios. De leite azedo a desemprego. De cavalos loucos ao nascimento de pequenos monstros de um só olho e duas cabeças.
Assustada, a tia penteava-lhe os cachos, tentando desfazer o clima macabro. Mas seria possível?
- Você tem um cabelo muito bonito.
A menina sorriu, deixando aparecer o espaço gerado pela queda daqueles de leite.
A conversa para resolver o problema vinha se estendendo há algum tempo. Na verdade, iniciou-se assim que ela pôs os pezinhos na casa dos tios, logo após a morte dos pais.
O bêbê franzino veio em uma noite de tempestade, como não poderia deixar de ser. Chorou sempre, não deixando ninguém dormir. Caso o barulhento céu tivesse permitido, poderia se ouvir um agudo sibilar por dentro do matagal que cercava a casa.
Já era de manhã quando os tios perderam a voz ao notar a enorme quantidade de negras serpentes mortas cercando a casa, como numa praga bíblica.
Pouco tempo depois chegou o tio em uma camionete alugada. Tudo parte do plano. A menina saltitou mais do que correu em direção ao carro e jogou-se nos braços do homem.
Não teve tempo suficiente o abraço para que ela sentisse as batidas apreensivas daquele coração.
Os primeiros anos da infância seguiram sem maiores problemas. Até o sétimo, quando começaram a aflorar os seus dons, e a nuvem escura de sua maldade não apenas talhava o leite nas panelas e abortava as crias, mas ulcerava pessoas. E sangrava a represa.
Até que veio o inexplicável acidente na fábrica. E a população, desesperada atentou de uma vez por todas para a sua presença, cercando em fúria a sua casa. Até serem expulsos por uma sazonal chuva de granizo.
Já dentro do veículo, penteada e perfumada, a menina permanecia quieta murmurando as suas canções preferidas enquanto sacudia de leve as perninhas em cima do banco.
Seria rápido, decidiram os tios. Sedada e amarrada, a pequena caberia dentro da mala, caberia dentro do rio.
Nunca cogitaram tirar-lhe a vida antes de fechar o zíper. Não por piedade, mas por medo. Só eles sabiam do que a bruxa era capaz.
Talvez angustiado com a situação, ou mesmo satisfeito com a sua resolução, o tio deitou os pés no acelerador.
Mas o carro derrapou na pista molhada de chuva ao desviar de um enorme cão negro que surgiu meio que por acaso na estrada.
A morte não foi instantânea. Como em um bom pesadelo, a tia ainda sufocou com o cinto no pescoço. O tio, com uma lasca de madeira enfiada na garganta, proveniente da árvore que se partiu com o impacto do carro.
Morreriam dali a quinze minutos.
A mocinha, ainda sentada e quieta, aguardava pacientemente a chegada do casal sem filhos que a desamarraria e a levaria pra casa.
Na semana seguinte seria adotada, sabia ela, pois este homem e esta mulher receberiam do seu médico um triste diagnóstico: a morte do primogênito, ainda no útero.
- Seis meses tinha o bêbê. – cantarolou a bruxa, trazendo a seus olhos um par de encomendadas
lágrimas, as quais seriam muito úteis quando da chegada dos seus novos pais.
Ficção?
5 Comments:
eu acredito em muita coisa que não acreditava.
macabro. bem na tua linha. se é que tens uma. lembrei de vários filmes ao ir lendo teu conto. muito bom márcio, de velho.
;)
já te convidei pra visitar meu blog de prosa.
vou deixar o endereço de novo.
www.prosanaveia.blogspot.com
tem link lá no poesia.
um beijo.
Ainda prefiro[apesar das evidências] acreditar em ficção,lendo seu conto viajei no fundo musical do Bebê de Rosemary...sabe aquela criancinha murmurando ritmada? pois é...
beijos
Bom pra ser lido na volta da fogueira... muito bom, mermão!
nota mental: nunca pegar criancinhas na beira da estrada hehehe
sorte e saúde pra todos!
Márcio, há tempos não vinha por aqui e constato que os textos estão cada vez melhores. Parabéns, caro ex-colega.
Abração.
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