Wednesday, October 31, 2007

Bem-vindo

Oito e pouco da manhã.
Sentado no vaso tentando ler o jornal, me perdia em uma leitura dinâmica das notícias, esperando que o cheiro da tinta suplantasse o cheiro do que eu comi na noite anterior.
Obviamente, não foi o que aconteceu.
Tentando colher o máximo de informação no mínimo de tempo, passei as folhas meio sem cuidado. Vingativas, elas me sujaram os dedos com sua tinta.
Até que, embebido por aquela meditação obrigatória, me vi tentando reconhecer os acordes de uma canção conhecida. Não havia rádio na cozinha ou celulares próximos.
Mas havia ao lado do meu um outro apartamento, também depositado em um prédio antigo. O meu prédio antigo, ainda imponente e digno, apesar das paredes de papel.
Auxiliado pelo silêncio quase religioso que impera na maioria dos banheiros, o som daquele assovio pareceu-me ternamente familiar, como o cheiro da comida da avó ou da calcinha da prima.
Esqueci-me por alguns instantes do horário e do jornal para tentar decodificar aquela música.
Prendi mesmo a respiração com medo de que os arrulhos de meu suspirar de selvagem obstruíssem aquela rudimentar melodia.
Fechei os olhos, procurando concentrar-me apenas nas notas. Apenas nas lembranças.
Em segundos já não havia mais azulejos encardidos ou toalhas meio molhadas.
Apenas a casa onde passei a minha infância. O cheiro da terra. O gosto do leite morno.
Porém, ao invés de confortar-me, essa identificação apavorou-me.
Pois ninguém no mundo conseguiria reproduzir essa canção do modo que ela estava sendo feita.
Ninguém além de mim.
A constatação gelou-me o sangue, fazendo cada fio de cabelo do meu corpo nu arrepiar-se.
Eram quase nove horas, mas o atraso era o que menos importava naquela manhã.
Porque abriram a porta do banheiro do meu vizinho.
Apavorado, pude ouvir os seus gritos de socorro. Pude concluir que ele estava sendo jogado no chão e agredido.
Precisara ainda de uma boa meia hora para silenciá-lo. Pude ouvir o solado de um sapato partir-lhe a garganta; ouvir-lhe sendo arrastado e jogado ao chão, seu corpo cuidadosamente encolhido dentro da banheira encardida.
Pude ouvir o desesperador ranger da serra de metal destacando-lhe os ossos, o surpreendente estalar de membros sendo arrancados.
Um serviço rápido e limpo, apesar de tudo.
Não pude olhar, mas aposto a minha vida que a banheira era cercada por pálidos azulejos e que enxugaram as mãos em uma toalha de rosto ainda nova.
E que o homem silenciado, sentado no vaso, tentava ler o jornal, perdido em uma leitura dinâmica das notícias, esperando que o cheiro da tinta suplantasse o cheiro do que comera na noite anterior.
Foi o que pensei quando abriram a porta em um único chute.
Pontualmente às dez horas.