Sunday, May 28, 2006

Primeira página

“Shy moon, hiding in the haze
I can see your white face
Hope you can hear my tune
shy moon”
Caetano Veloso


Eram onze da noite de ontem quando a lua caiu. Fazia um frio tremendo e eu, derrotado, já entregava minhas esperanças: a senhora que passeava religiosamente com o labrador caramelado não viria ao calçadão de pedras gastas em frente à minha sacada. Não naquela noite.
Como eu disse fazia frio, muito frio, e não havia nada fora do lugar. Exceto uma lua cheia, inexplicavelmente maior do que qualquer uma daquele ano, maior do que qualquer outra de qualquer ano, diriam os astrônomos mais tarde. Tarde demais.
Eu já baixava as altas cortinas do meu terceiro andar, me preparando para deitar outro sono sem sonhos quando percebi a prostituta solitária, parada como uma montanha bem no meio da rua. Pensei em gritar-lhe para que tivesse cuidado, se afastasse dos carros, mas, acabei por instintivamente, subir com seus olhos. E vi. A mais intensa, a mais imensa lua cheia da minha vida, enchendo o breu de um céu sem nuvens.
Imerso naquela imensidão de luz, quase não percebi as ondas que invadiram as areias, as ruas, a porta do meu edifício. Extasiado, nada fiz, a não ser olhar, reverente, a sua chegada e sorrir, entre dentes, um leve sorriso de bem-vinda.
Na minha cidade, às onze da noite, todos as avenidas beira-mar sumiram dentro daquela água salobra, sem deixar vestígios, como Atlântidas modernas. Casas, carros, pessoas, submergiram, tornando-se rapidamente, comida de peixes.
Algumas mulheres enlouqueceram para sempre, rasgando vestidos, paredes, corpos, regidas que eram por seus humores, os quais deixaram-se dominar pela presença imponente da lua; os asilos de loucos, destruídos: impelidos pela força da lua, os antigos moradores agora corriam ao encontro de sua liberdade.
Eram onze da noite quando a lua caiu. Caiu inteira, firme, mas inexplicavelmente leve num descampado no interior do Brasil. Em segundos a sua imagem preenchia os telejornais, invadindo as televisões que ousaram permanecer ativas. A astuta câmera conseguiu captar o exato momento em que uma menininha, usando uma camisola gasta, de algodão, conseguiu se desvencilhar da mãe e correr em direção ao cadáver da lua. Os jornais do outro dia descobriram que ela guiou-se exclusivamente pela força de sua curiosidade: seria a lua feita de queijo?
Afinal, desliguei a televisão e tentei dormir, embalado pelas ondas que agora soçobravam às bordas da minha janela.
Em algum lugar, chorava ajoelhado um poeta, inconsolável, velando a morte da lua.






Saturday, May 13, 2006

O vento *


“Me diga, por favor, adonde se escondeu o meu amor”





- Nem lembro mais o nome dela.

O bêbado dizia, meio mastigado, enquanto tilintava o gelo dentro do copo de uísque. O mais barato. Pago por mim.

- Mas o quê que tem, né? Eu lembro do cabelo, do corpo, do vestido, do jeito que ela andava. Um jeito meio assim, sabe? Um jeito de quem não pisa no chão, como se não devesse...

E toma o resto do uísque numa virada só.

-...não devesse nada a ninguém. Bonita demais. Só você vendo pra acreditar.

Dentro do bar só restavam ele e eu. O dono andava entretido, enxugando uns copos molhados. Mas era uma cidade de interior, e eu tinha certeza de que ele estava ouvindo cada palavra.

- Chegou aqui por acaso, rapaz, e foi morar sozinha! Diga aí! Foi morar sozinha lá pras banda do rio.

“Mas não tem casa lá.” – retruquei, um pouco contrariado comigo mesmo. Tinha medo que ele desistisse da conversa.

- Não tem agora. Botaram abaixo. A cidade toda derrubou. Depois cobriram com sal.

Lembrei-me de Tiradentes. E de que já tinha visto mesmo perto do rio algumas ruínas amontoadas.

- Começou a ganhar a vida sozinha. Plantava e colhia. Sozinha. Vez por outra aparecia pra vender. Era engraçado, rapaz. Ninguém comprava. Ela descia o morro carregada de verduras...linda...lindas, só você vendo. As verduras mais bonitas daqui. Tinha pra ninguém não. Mas voltava com tudo lotado. Ninguém comprava. Aí ela começou a dar. O que juntava de mendigo na beira da barraca dela...Dava tudo. Voltava pra casa só com os cestos. E na outra semana, do mesmo jeito. E na outra, e na outra.

Os olhos deles se perderam na janela. O dono do bar já não fingia mais sua surdez.

- Começou com Mané Negro. Acho que era o vagabundo mais doente daqui. De todos. Tinha umas perebas pelo corpo que davam medo só da gente olhar. Passou uma semana comendo do que a moça dava e ficou bom. Sarado, sarado. Chega dava gosto de ver. Depois foram os outros mendigos. Ganharam uma saúde no corpo, menino. Alguns começaram a trabalhar pra ela. Outros saíram da cidade em busca de emprego. Pedir não podiam mais, né? Não daquele jeito.

Estava ficando tarde, a lâmpada do poste já se cobria de mariposas. Algumas mais afoitas, morriam, fritas no calor.

- De repente todo mundo queria o que a coitada trazia pra feira. Derrubaram a barraquinha, roubavam dela. Começou até uma história de novena na porta da casa da mulher! Toda quinta.

O bêbado suspirou um instante, como se estivesse se lembrando de algo. Jogou o resto do gelo na boca, ainda com algumas gotas da bebida.

- Aí veio o menino morto. Acharam um inocentezinho na beira do rio. Disseram que foi ela. Correram pra casa da coitada no começo da noite, rapaz. Só você vendo. Cada um com um pedaço de pau maior que o outro. E pedra. O padre tirou ela de dentro de casa pelo cabelo, jogou no chão. E bateram. Ninguém perguntou pelo menino morto. Fizeram que não viram a barriga dela grande. E bateram os paus nos ossos dela e bateram as pedras na cabeça dela. No fim, num tinha quem reconhecesse de jeito nenhum. Tinha cabelo nas pedras, rapaz, cabelo. E sangue. A cabeça era uma pasta. Viraram as costas e começaram a descer pra cidade.

Os olhos do bêbado eram duas fornalhas, cheias d´água.

- Nem bem o povo começou a descer, ele veio. Uma coisa incrível, só você vendo. Um pé-de-vento assim forte, como a gente nunca tinha visto na cidade. Comeu casa, arrancou telha, o sino da igreja foi parar longe, longe...Os pedaços das paredes, do mercado, da praça voando por cima do povo. Dos que subiram o morro não sobrou ninguém. Ninguém. Dos que ficaram na cidade, acho que foi até pior. Tiveram uma merda de vida triste, daquelas que nem vale a pena. Namorado morreu, doença comeu. Sobrou quase ninguém pra botar a cidade pra cima de novo. Valia a pena não.

Agradeci ao bêbado, me despedi do dono do bar e fui, caminhando pra porta. O bêbado grita.

- Era ela linda, doutor! E boa! Cuidou de mim, doutor! Cuidou de mim quando eu fui lá. Foi só uma vez, doutor. Mas eu esqueço mais é nunca...

Assenti com a cabeça e cruzei a porta enquanto ele murmurava algo sobre a criança que a mulher carregava na barriga. E chorava.

Do lado de fora mais mariposas morriam na lâmpada. Elas nunca aprendem, não é mesmo?

Só então eu percebi, logo atrás de mim, um doce, mas forte, pé-de-vento. Com cheiro de feira.

*TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO EM WWW.BLOGRENAGEM.BLOGSPOT.COM. UMA REVISTA VIRTUAL COM TEMA MENSAL E CHEIA DE TALENTOS! CONHECE NÃO? TÁ ESPERANDO O QUÊ?