Monday, June 26, 2006

Toguenkyô*


Fox in the snow, where do you go?
Belle and Sebastian




Eram quase sete da noite no Japão. Perdida entre microscópios e amostras, a moça já trabalhava no laboratório da faculdade a mais de uma hora. Sozinha, como gostava, finalizando a sua pesquisa sobre os hábitos de uma certa espécie de besouros brasileiros. Insetos que imigravam, decididos, pra morrer do outro lado do mundo.

Justamente naquele dia tinha finalmente desistido de entender os japoneses e suas tradições. Teve uma conversa definitiva com o namorado e pensava seriamente em voltar pra um lugar quente, animado, onde as pessoas se cumprimentavam na rua, um lugar que lhe prendia apenas por tradições com as quais ela concordava, ou, pelo menos já se acostumara. É.Talvez voltasse a Recife.

Ajustou o foco do microscópio e viajou na estrutura daquelas asas. Pequenos arco-íris de espontaneidade que não sobreviviam muito tempo fora de casa. Como ela.

Terminou o último parágrafo das anotações em ideogramas. Subitamente, rasgou a folha recém-escrita e recomeçou: “A observação feita nos permite constatar que...”. Foda-se o japonês, fodam-se os japoneses.

Até que percebeu um vulto atravessando a entrada do laboratório. Pequeno. Na verdade muito parecido com uma...Ora, que bobagem, claro que não! Elas nunca conseguiriam entrar aqui. Conseguiriam?

Largou as anotações, os besouros e o microscópio e seguiu em busca da sua dúvida; era uma cientista, e cientistas não resistem a dúvidas, não é mesmo?

Correu até a porta ainda a tempo de ver a indiscutível cauda serpenteando pra fora do laboratório. Afinal, era uma raposa. Uma pequena e avermelhada kitsune.

Acompanhou o rabo e a raposa até a rua, que nevava. Os flocos caiam ainda tímidos, mas o frio já se pronunciava. A moça deu uma breve olhada e logo percebeu que o animal entrava num bosque à sua frente.

Guiada pelas possibilidades de descobrir uma nova espécie, ou novos hábitos de uma espécie antiga, a seguiu.

Parou às portas das árvores e foi afastando as folhas com cuidado.

Até que uma indescritível clareira abriu-se bem a sua frente.

E dentro da indescritível clareira uma maravilhosa vila.

E dentro da maravilhosa vila, pessoas. Pessoas como ela, que a cumprimentavam sorrindo como velhos conhecidos.

Ninguém nunca mais teve notícias suas no laboratório ou mesmo no Japão. Infelizmente, nem em Recife.

A verdade é que hoje ela mora nessa vila, trabalha numa pequena venda e tem sua própria plantação, nos fundos da sua casa. Próxima semana vai se casar com um rapaz de lá, um moço bom, filho de uma família tradicional.

Nos limites das incríveis possibilidades daquela local, só não lhe é permitido atravessar o portão grande, de madeira grossa, protegido por uma grande sakura vermelha.

Mas ela não tem interesse, nem mesmo em nome da sua curiosidade de cientista. Porque alguma coisa lhe diz que atrás desse portão mora o caminho de volta pro Japão, de volta pros japoneses e seus ideogramas.

Deitada em sua esteira, a moça fecha os olhos e enfim dorme, segura e feliz em seu Toguenkyô. Seu paraíso terrestre.




* Para Débora Suzuki, que tinha me pedido uma história com raposas.

Tuesday, June 20, 2006

Mensageiros



"Não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo!"
Qual o teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo
E o Corvo disse: Nunca mais."
Edgar Alan Poe - O Corvo



- Ela está mal.
Com um olhar derrotado, mas ainda serena, a minha irmã procurava me tranqüilizar. Mas era inútil. Mamãe morreria hoje.
Foram meses de hospital. E hoje recebi uma ligação de madrugada. Uma daquelas ligações das quais sempre fugimos. Realmente feitas para uma madrugada.
- Eu vou ligar pra funerária, acertar os detalhes.
Acertar os detalhes. Sei que ela não tinha culpa, mas odiava o modo como aquilo me soava. Ouvi o barulho da porta batendo e me virei para a luz da janela.
Havia um corvo empoleirado na árvore grande do pátio. E me olhava.
Sacudi a cabeça por alguns instantes. Não. Aquela definitivamente não era hora de enlouquecer.
Procurei prender minha atenção a qualquer coisa dentro do quarto, mas era inútil. Sim. Minha mãe morreria hoje. Sem dor? Como poderiam saber? O médico pode me garantir?
Sentei-me na cama e experimentei o colchão. Leve, mas firme. Num clarão, vieram-me à cabeça algumas memórias da infância. Da minha mãe ainda saudável, brincando conosco, como numa propaganda de seguros.
Busquei outra vez o refúgio da janela.
Na árvore, havia agora dois corvos.
Apertei os olhos em direção aos galhos e confirmei a suspeita. Dois. Firmes e dignos. Um ao lado do outro.
Sorri da minha própria idiotice. Era incrível como a mente nos prega peças. Aproveita-se dos nossos momentos de desespero, como um agiota particular.
Angustiado com a certeza, tentei manter as lembranças boas por perto, aos meus pés, como um cão, mas era impossível. Tudo que me vinha à cabeça era a imagem da minha mãe doente, sem cabelos ou dignidade, já magrinha. Deitada sobre a cama do hospital.
Tomei um gole da água morna deixada em cima do criado-mudo. Não consegui evitar sentir um pouco de nojo. Água morna tinha gosto de mijo. Não que eu já tivesse bebido mijo, mas...
Agora eram cinco.
Por mais que fosse difícil de acreditar, havia agora cinco pássaros negros na árvore. Cercando aquele quarto de hospital?
Respirando aos solavancos, empurrei com força a janela e, sem pensar, atirei o que estava a minha mão. O copo se partiu em vários pequenos cristais de vidro, que brilhavam, quase coloridos, à luz do sol.
Não, miseráveis, vocês não vão levar a minha mãe.
Mas os corvos estavam decididos, ergueram-se um pouco ao estrondo do copo e depois voltaram as suas posições. Como bons soldados.
A porta abriu-se de repente. Era a minha irmã de novo. Com lágrimas nos olhos, era de novo a menina de maria-chiquinha nos cabelos que costumava brincar comigo.
- Mamãe morreu.- disse, entre soluços.
Nos abraçamos por alguns instantes.
Do lado de fora do quarto, dez corvos alçaram vôo em busca do céu, levando de volta o que agora lhes pertencia.

Tuesday, June 13, 2006

Trilhas


O nome dele era João. Não lembro se da Silva ou Albuquerque. Ou Alburquerque da Silva, uma coisa assim. Só sei que era funcionário de um banco. E deitava formigas pelas orelhas.

Começou semana passada, quando fechava o caixa, compenetrado, passando por entre os dedos uma profusão de notas que não eram suas.

Quando lhe perguntavam o que sentia mexendo com tanto dinheiro, ele sempre dava a mesma resposta: nada. Não sentia nada. O dinheiro não era dele. Bem, talvez no começo. Mas a ilusão não durou uma semana. Seria bobagem.

Mal terminou de contar as notas, sentiu um leve raspar na parte interna da orelha. Delicado, sim, mas ainda incômodo.

Angustiado, anotou com pressa o valor conferido e procurou descobrir o motivo daquela perturbação repentina. Primeiro com a ponta dos dedos. Impossível. Sacou então um lápis marrom da mesa e enfiou-o com precisão dentro da cavidade do ouvido. Em cima da madeira fina surgiu uma formiga vermelha, de roça, exibindo-lhe suas garras ameaçadoras.

O banco ficava a quilômetros de qualquer espécie de planta, de qualquer espécie de terra.

João, um tanto confuso, pressionou-a entre a mesa e a borracha traseira do lápis, até que estivesse morta. Depois sacudiu temporariamente as suas dúvidas e tomou o caminho de casa. Aquela foi a sua última noite relativamente tranqüila.

A segunda caiu-lhe do nariz em pleno café da manhã. Voou num espirro, sobre os pães e as frutas. Viva, e talvez um pouco mais vermelha do que a primeira. Angustiado, João despejou com cuidado um pouco do café da xícara por sobre aquela pequena ameaça misteriosa e a viu agonizar. Foi o máximo que pôde fazer.

Como numa praga bíblica, as formigas passaram a chegar em profusão. Já lhe escorriam, em tropas, dos ouvidos, nariz, brotando como mágica por entre seus cabelos do peito, escalando-lhe com decisão os dedos do pé para marcar os seus calcanhares com dolorosos ferrões. À qualquer hora, em qualquer dia. Sem avisos de ida ou vinda, mas invariavelmente irritadas.

Os remédios não surtiram efeito, mesmo os perigosos formicidas cuidadosamente inseridos no canal auditivo, borrifados garganta abaixo, quando elas começaram a surgir de dentro da boca, marchando decididas por cima da língua.

Até que não foi mais possível trabalhar. As formigas já cobriam tudo. Móveis, papéis, cédulas. E João foi despedido. Justa causa, disseram. Seria mais honesto alegar causas naturais, pensou, enquanto arrumava suas poucas coisas. E partiu.

Já dentro do ônibus, encostou-se ao vidro da janela, sumindo no labirinto de seus próprios pensamentos. E agora?

Foi então que sentiu um leve arranhar no braço esquerdo. Mais formigas. Pretas, dessa vez. Mas agora havia um outro braço servindo de ponte.

Ao seu lado, sorria-lhe uma moça. Cúmplice.

Wednesday, June 07, 2006

Jogo da memória


- Hoje à tardinha finalmente cumprimos a promessa de visitar Dona Marta. Chovia muito e ela nos disse pra entrar rápido. Usava um roupão velho, azulado, e você se lembrou de que a sua mãe tinha um bem parecido. Pediu desculpas por nos receber daquele jeito. Aquele sapato que você escondeu na loja sujou um pouco de lama na entrada e você esfregou a sujeira no tapete da sala, rezando pra que ela não notasse.
O homem falava devagar, saboreando cada palavra, enquanto repartia com cuidado o cabelo molhado da sua mulher.
- Até que não demoramos muito por lá. Ela nos ofereceu um chá. Você odeia chá. Mas estava quente e aproveitamos bem. Mais uma vez falou do filho e se emocionou. Aproveitei pra ir fumar lá fora vendo a chuva cair, e deixei vocês duas sozinhas. Ela te disse que gostava muito de mim e que a gente ainda iria passar muito tempo juntos. Você concordou com a cabeça, mas achou melhor ir embora. Talvez não tivesse tanta certeza assim...
Segurou a cabeça da mulher com carinho e olhou bem dentro dos seus olhos. Ela sorriu.
- Corremos pro carro e você veio o caminho todo conversando. Estava animada. Paramos num sinal e bem a nossa frente um menininho não tirava os olhos de você, ajoelhado no banco de trás de um Fiat esverdeado, com umas marcas de batida do lado direito. Você pensava...
Ela tem um ligeiro sobressalto quando o homem puxa-lhe os cabelos para baixo.
- ...pensava de novo em nosso futuro. Em um filho. Mas ficou assustada. Pensou no que seria dele. Quase ao mesmo tempo cogitou a possibilidade de eu te deixar. E tremeu. Se achou velha, se achou feia, e sentiu lágrimas nos olhos. Virou a cabeça pra janela e falou qualquer coisa pra espantar essas idéias da cabeça. E chegou à conclusão de que realmente odiava chuva. Como as pessoas gostavam tanto de algo que só serve pra sujar roupas e sapatos? É. Essa é uma maneira bem peculiar de se ver a chuva.
A mulher parecia perdida dentro da camisola, do quarto.
-Depois a gente chegou em casa e assistimos na televisão àquele filme antigo que você adora. Nem se incomodou de estar dublado. Eu peguei no sono logo na sua parte preferida. E pela primeira vez você não ficou chateada. Pelo contrário. Sorriu pra mim e ficou passando de leve a mão no meu cabelo. E por um minuto, teve a certeza que sim, a gente ainda vai durar muito. Pronto. Tá linda.
O homem tinha acabado de repartir o cabelo da mulher, depois do seu banho, como fazia toda noite. Deitou-a de leve na cama, arrumou a sua cabeça no travesseiro, beijou-lhe a testa e caminhou para fora do quarto.
Logo depois de atravessar o umbral da porta, virou-se à mulher.
- Não, você não está velha e eu nunca vou te deixar. Agora durma.
E ela obedeceu, agradecida.

Sunday, June 04, 2006

Somos

Como que acorrentada à beira do caixão, uma viúva ruminava a enxurrada de pêsames vomitados por aquele bando de desconhecidos.

Era nova ainda, conservada como uma bem guardada compota de doces. Trazia na cara lascivos lábios vermelhos e tentava, sem muito sucesso, espantar discretamente uma grande mosca azul que vez por outra inspecionava o rosto do falecido.

O vestido de cetim preto colava-se às suas carnes, ainda duras; acariciando os seios fartos, escorregava sem nenhuma cerimônia por dentro das coxas bem torneadas, como um homem de mil braços e quinhentas, talvez oitocentas, mãos.

A mosca azul, finalmente desistiu, levantando vôo. A mulher a seguiu com um olhar até a entrada da sala.

Lá havia um menino. Mocinho ainda. Forte, rígido. E vivo.

Suas pernas amoleceram frente àqueles cabelos loiros, àquela pele inocente e diabólica; frente àquele personagem de Visconti.

Até que os cabelos loiros a encararam. E a viúva sentiu-se ensopar.

Seus lábios vermelhos, apesar de quentes, permaneceram selados. Ela apenas indicou com a cabeça o caminho do banheiro e o menino a seguiu, como uma ovelha obedecendo a um cão pastor.

Trancou-se a porta, baixaram-se calças, subiram-se vestidos. E a mulher foi aquietada.

Angustiadamente feliz por aquela repentina lufada de vida no meio de tanta morte, ela cravou suas unhas, também vermelhas, na bunda branca do menino. Grega como uma estátua.

No caixão, a mosca azul já passeava decidida sobre os lábios pálidos do defunto. Forte, rígido. E morto.