Wednesday, June 20, 2007

Livro de receitas



Ela me encontrou no meio da rua, quase em frente à entrada do metrô. Foi se chegando meio de leve, sorrateira.Até que se pendurou com força em meu braço.
- Me leva embora daqui.
Foi o que disse ao cravar as unhas compridas em mim.
Tudo tão rápido que eu não tive nem tempo de me assustar. Apenas obedeci.
Meio sem saber porquê, agarrei-lhe o punho, arrastando-a pra estação.
Numa jogada quase ensaiada, o metrô zuniu, receptivo, a sua chegada.
Pra onde estávamos indo? Não sei. Não sei.
Dentro do vagão, protegi seu corpo franzino contra o meu.
Não, ninguém ia pegar você.
Passando rapidamente pelo lado de fora, pude vê-los. Muitos. Sóbrios e decididos, aguardavam a nossa saída.
Peguei-a pelo braço, rebocando-a pra o interior.
Esbarrando em quase todos os passageiros, consegui encontrar um lugar vago no fundo. Ninguém estranhou. As pessoas tinham mais o que fazer.
Mas eu não poderia ficar lá dentro pra sempre. E a linha não é lá tão grande assim. Foi o que disseram as palavras “última estação, desembarque obrigatório” em minha cabeça.
Ainda tínhamos algum tempo.
Decidido, abri um tantinho da bolsa de feira e fui recortando-lhe em pedaços com um pequeno canivete comprado num semáforo.
Primeiro a mão.
Quase sem abrir a boca, passei a mastigar-lhe em nacos. Como um filhote de tubarão no útero materno.
Depois um seio.
Esse foi mais difícil.
No vagão, ninguém me notava. A não ser uma criança, ranheta e curiosa, que procurava entender o que eu mastigava.
Uma perna.
Limpei, enfim, com a manga da camisa, um filete de sangue que me escorria pelo queixo e espiei dentro da sacola colorida de lona para sorrir-lhe um sorriso confortador.
Enternecida, a sua cabeça me olhou.
Não.
Ninguém ia pegar você.