Sunday, September 23, 2007

A praga

“Ah, que saudade que eu tenho da aurora da minha vida”
Casimiro de Abreu


Sorridente como uma boneca de feira, a menina estava rígida. Feliz, com aquela saudável tensão das crianças envergando roupas novas.
- Linda – foi o que disse a tia, de joelhos à sua frente – Deixa só ajeitar o laço.
Mas não estava ela referindo-se ao laço da menina, mas aos laços das cordas que atavam as mãos da criança.
Passando os olhos pela sala, recapitulou de leve o necessário.
Corda e mala. Simples assim. Corda, mala e vestido amarelo. Sim, um vestido bem amarelo para reter em suas fibras a força dos maus espíritos.
A pequena era uma bruxa.
Desde que chegou ao vilarejo, trouxe consigo toda uma sorte de malefícios. De leite azedo a desemprego. De cavalos loucos ao nascimento de pequenos monstros de um só olho e duas cabeças.
Assustada, a tia penteava-lhe os cachos, tentando desfazer o clima macabro. Mas seria possível?
- Você tem um cabelo muito bonito.
A menina sorriu, deixando aparecer o espaço gerado pela queda daqueles de leite.
A conversa para resolver o problema vinha se estendendo há algum tempo. Na verdade, iniciou-se assim que ela pôs os pezinhos na casa dos tios, logo após a morte dos pais.
O bêbê franzino veio em uma noite de tempestade, como não poderia deixar de ser. Chorou sempre, não deixando ninguém dormir. Caso o barulhento céu tivesse permitido, poderia se ouvir um agudo sibilar por dentro do matagal que cercava a casa.
Já era de manhã quando os tios perderam a voz ao notar a enorme quantidade de negras serpentes mortas cercando a casa, como numa praga bíblica.
Pouco tempo depois chegou o tio em uma camionete alugada. Tudo parte do plano. A menina saltitou mais do que correu em direção ao carro e jogou-se nos braços do homem.
Não teve tempo suficiente o abraço para que ela sentisse as batidas apreensivas daquele coração.
Os primeiros anos da infância seguiram sem maiores problemas. Até o sétimo, quando começaram a aflorar os seus dons, e a nuvem escura de sua maldade não apenas talhava o leite nas panelas e abortava as crias, mas ulcerava pessoas. E sangrava a represa.
Até que veio o inexplicável acidente na fábrica. E a população, desesperada atentou de uma vez por todas para a sua presença, cercando em fúria a sua casa. Até serem expulsos por uma sazonal chuva de granizo.
Já dentro do veículo, penteada e perfumada, a menina permanecia quieta murmurando as suas canções preferidas enquanto sacudia de leve as perninhas em cima do banco.
Seria rápido, decidiram os tios. Sedada e amarrada, a pequena caberia dentro da mala, caberia dentro do rio.
Nunca cogitaram tirar-lhe a vida antes de fechar o zíper. Não por piedade, mas por medo. Só eles sabiam do que a bruxa era capaz.
Talvez angustiado com a situação, ou mesmo satisfeito com a sua resolução, o tio deitou os pés no acelerador.
Mas o carro derrapou na pista molhada de chuva ao desviar de um enorme cão negro que surgiu meio que por acaso na estrada.
A morte não foi instantânea. Como em um bom pesadelo, a tia ainda sufocou com o cinto no pescoço. O tio, com uma lasca de madeira enfiada na garganta, proveniente da árvore que se partiu com o impacto do carro.
Morreriam dali a quinze minutos.
A mocinha, ainda sentada e quieta, aguardava pacientemente a chegada do casal sem filhos que a desamarraria e a levaria pra casa.
Na semana seguinte seria adotada, sabia ela, pois este homem e esta mulher receberiam do seu médico um triste diagnóstico: a morte do primogênito, ainda no útero.
- Seis meses tinha o bêbê. – cantarolou a bruxa, trazendo a seus olhos um par de encomendadas
lágrimas, as quais seriam muito úteis quando da chegada dos seus novos pais.



Ficção?




Tuesday, September 04, 2007

Mapa dos arredores

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos
Mário de Andrade
Sabe o que eu acho mais estranho dessa cidade? É que você não consegue chegar no mesmo lugar contornando pelo caminho oposto. Ruim de acreditar, né? Mas é o que acontece. Como se os prédios se reorganizassem. Como se a cidade se espreguiçasse. De leve. Se aconchegando dentro de uma manta, naquela madrugada fria daqui.

As pessoas não. As pessoas são dançarinos! Até na pose. Aquela que artista bom deve ter. Um olhar duro, meio pedante. Como se não estivesse nem aí pra ninguém. E talvez não estejam. Vai saber.

Vê só. Segue a linha em cima do meu dedo. Mais uma estação e a gente chega em Paraíso...

Imagina se fosse assim, rápido. Imagina se fosse fácil assim.

Eu nem sei mais. Ah! Olha ele chegando. Percebe. Viu o que eu disse? Ninguém esbarra em ninguém. Como em uma coreografia. Eu nunca soube dançar. Você sabe? No começo até desenrolava, mas nunca conseguia seguir aquele movimento repetitivo muito tempo. Dispersava logo. Acho bonito quem dança. Você acha?

Mais uma só. Pertinho. E a gente. Sabe que eu tentei? Vez por outra eu até entro no vagão. Espero as pessoas passarem e me meto nessa dança esquisita. Com cuidado. Pra não atrapalhar, entende?

Eu gosto de ficar bem na beiradinha da linha amarela. Até passar um pouco de vez em quando. De vez em quando até abro os braços. Acho bom sentir o vento quando ele chega.

Não tenho muito o que fazer não. Vejo gente indo, gente vindo. Alguns com mais constância. Vê aquela moça com a blusa de alça? Vem sempre. Toda vida com essa cara, como se.

Vê.

Percebeu? Como se não quisesse entrar. Ou tivesse errado de vagão. Mas entra. E sempre volta.

Dia desses tentei chegar a Paraíso de novo. Até escutei a moça falar: próxima estação Paraíso. Mas quem disse? A porta nunca se abre. E acabo por aqui mesmo.

Aí me sento no pé do mapa e espero o próximo chegar.

Tu ainda é novo por aqui. Logo logo vai saber até onde pode ir. Eu sou de Vergueiro. Diz que tem um senhor que pode ir até quase o fim da cidade. Já imaginou uma coisa dessas?

Saudades dos parques. Se bem que andam meio lotados. Os de lá não gostam muito de companhia. Mas ficar preso num parque deve ser melhor que ficar preso em um metrô, né não?

Ou em cima de um prédio. Em um banheiro. Em um ponto de táxi.

Vai. Não precisa dançar com as pessoas não. Nem se preocupar com o frio. Nem com fome. Nem com a chuva. Ou com a poluição ou com lugares meio estranhos.

Sobe a escada. Não, a rolante não. E segue o corrimão, sem olhar pra trás. Se conseguir, some daqui. Vai tentando aos poucos. Vai vendo até onde você consegue chegar. Quando descobrir, me conta, tá? Me diz como anda o Mosteiro, a Praça da República. Me fala do Mercado. Me conta da Mooca, ah, pelo amor de Deus.

Vai.

E o outro obedece, meio sem saber porquê. Um passo leve, ainda meio tímido.

Sem conseguir resistir, girou nos calcanhares. Todos os de Vergueiro já o olhavam, firmes, serenos. A mais silenciosa torcida do mundo.

Degrau a degrau, continuou. Alcançando o máximo de luz que enxergaria.

Em pouco tempo já descia a Aclimação, com uma apreensão mal disfarçada de felicidade. Rezando baixinho para que seu limite andasse bem longe.

Queria ser do mundo.