Wednesday, April 26, 2006

Último instante


Era noite. O casal, já velhinho, passeava de braços dados sob um céu que esfriava rapidamente. Assim juntos, eram como dois rochedos que, sem saber porquê, tinham se encontrado no meio de um mar revolto. E assim completos passeavam, sem receio, por entre uma praça vazia e potencialmente perigosa, pois sabiam-se fortes. No meio daquele lugar eram como os postes e os bancos, as árvores e o lixo, parte da paisagem.
O que ninguém sabia, nem eles mesmos gostavam de pensar muito tempo no caso, era que não se suportavam no sentido mais clássico da palavra. Os quase cinqüenta anos de prisão estavam matando a golpes de machado o que sobrava de autêntico, dentro de cada um deles. Quantas vezes o velhinho não acordou em pé, ao lado da mulher, segurando de forma ameaçadora o travesseiro perto de sua cabeça, mas desistindo no último instante? Que a velhinha já pensou seriamente em despejar sabonete líquido no piso de borracha que cobria o chão do chuveiro? Toda vez que ela sorvia, lenta e irritante, o chá da xícara, produzindo um chiado insuportável, ele crivava os dedos por baixo da toalha da mesa, procurando evitar que a sua mão enrugada encontrasse a faca de partir queijo, jogada em cima da mesa. Quando ele limpava o pulmão, escarrando na pia da área de serviço e recostando a cabeça embaixo da torneira, era à velhinha quase, quase incontrolável o desejo de segurar-lhe os cabelos brancos naquela posição até que não houvesse mais ar. Só paz.
A velhinha esfregou as mãos e o velho, instintivamente protegeu-as por entre as suas, aquecendo-as. Ela sorriu um sorriso aéreo, perdido em divagações. “Um centavo por seus pensamentos”. Pediu o velho. “Melhor não”.Respondeu ela.
Assim juntos, perdidos numa noite deserta, eram como dois rochedos que tinham se chocado no meio de um mar calmo. E seguiram, por entre a praça, a caminho do que sobrara de seu futuro.

Friday, April 07, 2006

Verde, cor de cana


A capota amassada do velho Fiat Uno vermelho estava manchada de sangue. O corpo do menino, caído no chão. Morto. As marcas dos pneus sobre a pele branca.

-Você conseguiu, campeão! - berrava a mulher bêbada. Ele saiu do carro segurando-se na porta. Suas pernas tremiam.

Era mentira. Só podia ser mentira. Ele não matou ninguém.

-Cala a boca. Cala a boca. - era tudo que conseguia repetir.
-Você matou o menino.
-De onde ele saiu?
-Não importa.
-Pare com isso. Me ajude, vamos levar ele.
-Pra onde, seu idiota? Você não consegue ver que ele está morto? - seu choro arrebentou, impedindo a compreensão das últimas palavras.
-Chama alguém.
-Quem? São duas da manhã - ela já gritava abertamente - Não tem ninguém aqui perto. Só a porcaria desta linha de trem.
-Eu nem vi ele se aproximar. Surgiu do nada por cima do carro.
-Claro que não viu, você está bêbado. Você nunca prestou nem pra dirigir.
-Me ajuda a colocá-lo dentro do carro.
-Eu não vou tocar nele.
-Você quer ser presa? Eu não estava sozinho.
-Miserável.
-Pegue os pés. Vamos deixá-lo no canavial.
-Meu Deus, ele deve morar aqui perto. Deve ter família...
-Você acha que eu estou gostando disso? - ele a segurou pelo braço com força - Pois digo a você uma coisa: não estou! Agora me ajude a levá-lo para a plantação.Pegue os pés.

Os dois suspenderam o garoto. Mas estranharam. Ele pesava como três homens fortes.

-Eu não posso com ele.
-Claro que pode.

Levantaram com muito esforço e foram até o canavial. A lua iluminava toda a estrada. Deitaram o corpo perto dos pés de cana.

-Pronto. Agora vamos embora. E olha só: não aconteceu nada hoje. Esqueça esta história. Vai ser melhor pra nós dois. Ninguém viu nada.
-Nós vimos.
-Acho que posso viver com isso. Contanto que eu esteja solto. Vamos embora.

Saíram do canavial apressados. Ela parou de repente.

-Você ouviu?
-O quê?
-Eu não sei. Um barulho no mato.
-É o vento. Deixa disso. É a última coisa de que a gente precisa agora.

Um pequeno vulto correu em sua frente. Depois outro ao lado. E outros. Correndo e rindo.Crianças.

-Quem são estas...? Quem...Vamos embora daqui, vamos embora daqui, rápido, pelo amor de ...

A menorzinha surgiu de repente. Parecia flutuar de leve sobre o solo de massapé. Trazia um caderno na mão e uma boa dose de sangue escorria pela sua cabeça, de onde tinha sido arrancado parte do couro cabeludo.

-Você pode me ajudar, moça? Me ajudar a atravessar a linha do trem? Minha mãe não gosta que eu chegue em casa muito tarde.

A mulher gritou e correu, saindo do canavial. O apito do trem cortou o silêncio da noite. O sinal passou de verde para vermelho e baixou-se o bloqueio. Ela atravessou desesperada e não houve tempo de parar. O trem a atingiu com força.

O homem surgiu, cambaleante, de dentro da plantação de cana e tentou entrar no carro. Apesar da tremedeira, conseguiu abrir a porta e sentar-se no banco. Instintivamente ajustou o retrovisor.

Havia dois olhos de criança refletidos do banco de trás. Olhos de menino.