Saturday, January 28, 2006

A estação


Ainda era bem cedo quando ele chegou à estação. Trazia uma mala nas mãos e uma mochila nos ombros.

Parou quase à beira dos trilhos e puxou o bilhete do bolso, conferindo-o. Tudo correto. O trem chegaria em dez minutos. Não teria muito mais tempo ali. Os trens nunca se atrasam, não é mesmo?

Colocou a mochila do chão, perto da mala, para descansar um pouco, mas percebeu então que o grande peso nos seus ombros não era da mochila, nem era da mala. O peso nos seus ombros seria arrastado ainda por um bom tempo aonde quer que fosse. Era saudade.

Virou-se para a entrada da estação e deu uma boa olhada ainda, tentando deixar na memória a lembrança de tudo que vivera até então naquela sua cidadezinha de maquete. As brincadeiras de criança nos trilhos, as broncas dos funcionários. O amigo que morrera atropelado pelo trem. Sempre o trem.

Foi então que percebeu um ponto negro se aproximando de longe. Um ponto negro que foi se tornando imenso e barulhento. Até aportar, com toda sua imponência, aos seus pés. Num instante, surgiram dezenas de pessoas, como se tivessem brotado do chão. Envergando malas, lenços, e quem sabe, saudade, como ele, alguns subiram, outros apenas se despediram.

O seu embarque foi rápido, direto. Sentou-se à janela, olhando a estação de cima. Não havia de quem se despedir. Todos os parentes e amigos que lhe sobraram, tinham deixado a cidade fazia muito tempo.

Meio sem saber porquê, acenou, como tantos outros. Lá de baixo, uma velhinha acenou de volta. Ele sorriu enquanto o trem partia.

Fechou os olhos e tentou dormir um pouco, mas era impossível. Decidiu então repassar, cuidadosamente, todos os atos a serem tomados na cidade nova, antes de pegar o avião para mais longe ainda.

Leu o endereço para si mesmo, em voz baixa, enquanto o trem adentrava o túnel. Estava saindo da cidade. O pensamento gelou seu sangue por alguns instantes. Nunca tinha saído da cidade em toda sua vida.Segurou a alça da mochila com força, como quem esfrega uma lâmpada mágica. Pediu para que sumissem com aquele sentimento.

E então, aconteceu. O trem saiu do túnel e a forte luz do começo de tarde lhe invadiu os olhos, sem pedir licença, enquanto a estação se aproximava.

Mas, tão rápido assim? - perguntou ele pra si mesmo.E viu a mesma estação, algumas das pessoas, e a mesma cidade voltarem aos seus olhos, à sua lembrança.

Dizem que tentou ainda por semanas ir embora, sempre com um fiapo de esperança a esgarçar-lhe o coração, sempre voltando à mesma estação.

Ainda tentou sim. Mas depois desistiu. Se se conformou, isso ninguém sabe. Talvez nem o próprio. Tudo que sabe, ou que aprendeu ao longo do tempo em que permaneceu vivo, era que a oportunidade de ir embora quem dava não era ele. Era o trem.

Thursday, January 19, 2006

Um último desejo


A mocinha, deitada na cama, vestia apenas um lençol branco. Loira e desesperadoramente bonita, esfregava o dedão do pé na fivela do cinto dele.

- Mas você não tem medo de morrer?

O homem, ajoelhado em cima da cama, em frente a ela, deu uma rápida olhada pra si mesmo pelo espelho do motel. Só então.

- Já tive muito, no começo, quando tava no meio dum serviço qualquer. Agora tenho mais não. Eu...

Ele fica calado, e engole a última frase num sorriso. A mocinha percebe.

- Você...
- Esquece, é besteira.

Ela então passa a esfregar, com firmeza, seu calcanhar no meio das coxas dele. Logo abaixo da fivela do cinto.

- Vai dizer não?
- Se todo interrogatório fosse assim....Era uma bobagem, esquece.

Mas ela não pára.

- Eu ia dizer que acho que já vivi até demais. Pra minha...profissão, sei lá.
- Profissão sei lá? – ela pergunta, num sorriso sarcástico.
- Eu tenho problema em chamar isso de profissão.
- Por quê?
-Sei não. Coisa de família...
- Sua mãe também tinha era? Ou seu pai?

Ele se levanta, não responde. Só vai até a bancada e pega a carteira de cigarros. Acende dois. Leva um, preso nos dedos, até os lábios dela. Ela o empurra, com as mãos, numa careta de nojo.

- Brigada, mas deixei de fumar. Você devia também...Isso mata.
- Pois é. Por isso que fumo.

Cai então uma chuva, de repente. Ela, deitada de costas na cama, vira o pescoço e consegue ver a imagem dele, entrecortada pelo neon da farmácia.

- Já notou que a gente não tem mais quase noite? É tanta luz, tanto... – ele dá um trago longo. -...tanta...
- As pessoas andam com medo do escuro.- ela fala, num tom infantil. – Você tava me dizendo da sua profissão.
- Deixa pra lá.
- A gente ainda tem quase uma hora.
- Vou deixar de crédito. Preciso ir embora.
- Prum serviço?
- Talvez.
- Pode falar não?

Ela se vira e fica de bruços na cama. Tira o lençol. Ele, se encosta na janela e sente os pingos de chuva descendo pelas costas, até entrarem dentro da calça, molhando-lhe a bunda. Quase ri.

- Continua o que tava me dizendo. – a moça pede, olhando-o bem nos olhos.
-Eu te disse uma porção de coisas.
- Você disse que achava que tinha vivido demais já. Que era hora de morrer e talz.
- E já vivi mesmo.
- Isso é papo de velho, idoso mesmo. Eu conheço, já fudi com vários. A gente não faz nada. O pau deles é meio como uma noz.

Ela ri um pouco, depois, balança a cabeça, como se espantando a lembrança.

- Tá me chamando de velho...De velho com pau pequeno?
- Nunca! Quem sou eu?

Ele a olha como se respondesse.

- Mas você me disse que queria estar morto. – ela insiste.
- Não é bem um querer, mas acho que não me importaria se estivesse. Não agora. Eu tinha tanta sede, tanta...vontade de experimentar a vida. Mas já fiz muito. Tudo foi ficando só arriscado, muito sem...
- Pois eu te digo que posso ajudar.

Ele franze a testa, confuso.

- Me ajudar?
- Na verdade, é esse o meu trabalho. Ajudar.

Ela sorriu, e perdeu, rapidamente, todo o brilho nos olhos. Agora era como uma boneca de supermercado.

- E como...?
- Peça. Feche o olho e peça pra estar morto. Fica mais fácil pra mim.

Ele sorriu e fechou os olhos por um minuto antes de puxar a arma com silenciador, guardada ao lado dos cigarros, atingindo a moça bem no meio dos olhos de vidro.

Bem que lhe avisaram. O alvo daquela noite era meio fraco do juízo.

Friday, January 13, 2006

Uma noite


- Pra onde, madame?

Era de madrugada, quase. Uma dessas noites que seriam iguais às outras. Ou quase.

O taxista tinha saído de casa mais uma vez, como o havia feito tantas outras vezes. Deixou o sofá rasgado, a cama revirada, mas lembrou-se de desligar a televisão, interrompendo o apresentador do jornal bem na hora das manchetes, com um clique, e saiu porta afora.

A mulher, sozinha, parada no ponto de ônibus em frente à marquise apagada da loja de tecidos, estendeu-lhe a mão. Ele encostou o carro e abriu-lhe a porta, apertando um botão no painel do carro novo. Ela entrou, sem pressa, mas parecendo um tanto nervosa.

- Pra onde, madame?
- Só dirija. –disse entre os dentes.- A noite acabava de ficar incomum.

O taxista engatou a primeira, sentindo o toque do câmbio novinho em folha. Olhou a paisagem da rua à frente e, por um minuto, achou que estava dirigindo pra si mesmo, a caminho de um bar qualquer. Mas enfim percebeu, pelo retrovisor, o amargo perfil da sua passageira, e aterrissou de volta.

Ela parecia mais calma. Porém, ainda muito angustiada. Não tão jovem, bem vestida. Só o embrulho pardo, coberto por um saco plástico, desses de supermercado, é que destoava do conjunto.

Por um minuto ele teve alguma pena dela. O que teria acontecido? O sinal ficou vermelho e o carro foi freando, lentamente. O súbito ruído das travas das portas trouxe a passageira de volta ao mundo real.

- Desculpe, madame. Mas a senhora sabe como é. Está tarde. A gente não vive mais numa cidade segura...

A mulher não respondeu. Ficou parada olhando a paisagem correr e segurou de leve a alça do saco. Por uns instantes, só se ouviu o estalado do seu pacote esfregando-se ao outro plástico, o do banco do carro novo.

Foi só então que o taxista acordou. O que diabo uma mulher, sozinha, estaria fazendo no meio da rua àquela hora? E ainda mais carregando um pacote esquisito? Assalto. Seria um assalto. E começou a ficar assustado de verdade. Discretamente, sacou o celular do painel e o manteve na mão, com o número da polícia preparado.

A mulher trouxe o saco ainda mais pra perto de si e o taxista cravou os dedos no couro do volante. Novinho.

Outro sinal fechou e o carro parou ao lado de um ônibus. O taxista pensou, entristecido, que a última visão de que se lembraria seria a de um motorista barrigudo, velho e sonolento, indo pra lugar nenhum.

O ruído do saco plástico foi lentamente transformando-se num murmúrio, quase um sussurro, atraindo os olhos do taxista ao retrovisor.

Só então ele percebe que era um saco relativamente grande, meio arredondado pelo seu conteúdo, e viscoso. O líquido, de uma coloração indecente, já umidificava o saco plástico, o banco, e começava a pingar lentamente, nos tapetes novos do táxi. Porcaria.

O motorista aperta os olhos por uns instantes, libertando uma gota de suor que surge em sua testa. Preferia um assalto, Deus do céu, como preferia um assalto.

A passageira suspira e pede-lhe que pare. Trêmulo, ele enfia o pé na embreagem macia, depois no freio, e o carro dá um leve solavanco, como se assustado também.

A mulher pergunta, com sua voz embargada, pelo preço da corrida. O taxista diz que não foi nada, que ela pode ir embora. Que ela deve ir embora.

Compreensiva, ela abre a porta do carro e desce. O motorista, imóvel, ouve apenas o bater rápido de seus saltos altos preenchendo a rua deserta.

Rapidamente, engata a primeira e sai, aliviado como nunca. Porém, perde o fôlego e segura um grito ao notar, pelo retrovisor, o que a mulher deixou no veículo. Freia.

Ouvindo apenas o bater ensurdecedor de seu coração, levanta-se, sem olhar pros lados e abre a porta do passageiro. O líquido do saco já molha todo o banco e agora se esgueira, sorrateiro, ao chão. Imundo.

Decidido, o taxista segura-lhe pelas alças, enojado, e o arrasta pra fora do carro. Pesado. Levemente inconsistente.

Pela primeira vez presta atenção à paisagem e descobre que parou próximo a uma ponte, a um rio. Coincidência?

Ele o leva então até a beira da ponte e o arremessa, com toda sua força. O ribombar das águas sendo invadidas faz coro com seu coração. Espera ainda por alguns instantes a água acalmar-se e volta ao carro.

Teria visto algo escorregar de dentro do saco? Algo como...? Não, não viu nada. Na verdade até fechou os olhos ao jogar-lhe. Esse sim é um momento bom pra usar a sua imaginação, pensou, ao limpar a sujeira do líquido inominado. Um líquido que parecia sorrir do seu medo.

“Era um peru, desses de Natal mesmo. Um peru de Natal meio passado.”- disse um pouco alto, depois bem alto, pra que acreditasse. E sentiu-se feliz, por ainda ter mantido os plásticos nos bancos do carro novo.

Saturday, January 07, 2006

O preço do mar


Entardecia. O pescador viu o sol indo embora com um suspiro triste de se ouvir. Os amigos já achavam que ele nunca foi lá muito bom da cabeça, mas da semana passada pra cá tinha piorado muito.

Todo mundo que morava por ali o conhecia. Era o tipo de pessoa que parecia ter nascido em cima de uma jangada. Seus pés nunca bambearam na madeira do barco, seu corpo parecia conhecer de antemão os movimentos do mar. Era só ele subir pra trabalhar que já juntava gente na areia da praia esperando a sua dança com as ondas. Sim. Era coisa bonita de se ver.

Mas o mar sempre cobra seu preço. O pescador só se sentia gente mesmo dentro d’água. Fora, sofria como um peixe preso nas redes arrastadas, com seu andar inseguro, vacilante, procurando uma cadência que não estava mais lá.

Assim que o sol se foi, engolido mais uma vez pelo horizonte, o pescador tomou a decisão. Foi até a jangada, retirou a âncora e partiu por dentro daquele breu.

De uns tempos pra cá, como disse, ele andava bem pior. Não queria saber de comer, tratar peixes lhe dava angústia, pescava apenas pra poder estar dentro d’água. A sua ausência em casa já estava virando motivo de piada na vila toda. Mas ele não parecia se importar. Nem com a sua mulher sozinha e triste, nem com as crianças que lhe xingavam aos berros no meio da rua. Rindo. Cruéis como só as crianças sabem ser.

Manejando o leme artesanal, ele levou a jangada cada vez mais pro meio do mar, em direção aos recifes. Pensou, por alguns instantes, ter ouvido a voz de sua mulher pedindo que voltasse, os recifes eram muito perigosos. Mas era só o vento carregando-o nas suas mãos.

Um dia desses aí, dizem que pegou uma briga feia com Sebastião por conta de um peixe; Sebastião tinha puxado o bicho da água e o deixou morrer em cima da jangada. Os outros pescadores tiveram o maior trabalho em tirar a faca das suas mãos. Por pouco não houve sangue. Foi aí que começou a sua fama de louco.

Finalmente o vento foi amainando. Ele empurrou um pouquinho de nada o remo, até a jangada chegar na beirinha das pedras. O cheiro do mar, muito mais forte ali, quase lhe embriagou. Vez por outra o salpicado das cristas das pequenas ondas, quebradas pelas rabanadas decididas dos tubarões que ali nasciam, cintilavam na escuridão.

Quase sem poder conter a alegria que lhe estourava o peito magro, se levantou, firmando-se na jangada. Baixou então a surrada bermuda e caiu na água. O salto inesperado espantou por alguns instantes os tubarões.

Já dentro daquele mundaréu de água, sem medo, passou a movimentar de leve seus dedos, suas mãos. Realizado. Mas havia algo errado. Ou certo. Os seus dedos se encolhiam de leve enquanto suas pernas reuniam-se, bem devagar. Todo o seu corpo finalmente retornou ao mar. Ele então, bateu a sua calda na superfície, como num adeus, e nadou pra mais longe ainda da vila.

Já amanhecia. A mulher do pescador ainda estava na beira da praia esperando a jangada voltar, agarrada a sua fé e ao cordãozinho que tinha ganhado de presente dele. Tentava rezar e espantar pra bem longe a certeza de que o mar tinha levado de volta aquilo que lhe dera. E, mais ainda, tentava a todo custo espantar a certeza de que a história se repetiria com aquele menino que balançava na sua barriga já tão grande. Um menino que parecia acompanhar o movimento das ondas do mar.