Tuesday, September 19, 2006

Sete em ponto




Café - da - manhã. As duas senhoras mastigavam educadamente seus ovos pochê, colesterólicamente corretos, enquanto bebericavam pequenos goles de seus leites de soja. Sabor laranja.
“Sabor em soja?”
- Soube da filha de Jerusa?
“Nhact”
- Não.
- Morreu.
A outra perdeu o interesse no café.
- Como?
- Estourou uma veia na cabeça. Aneurisma, coisa assim.
A palavra temperou a torrada sem manteiga e desceu mastigada silabadamente pelos lábios.
- Tão nova...
A velha tentou partir os sorriso com os lábios enrugados, mas foi impossível.
- Mas diz que é assim, né? Quando chega a hora, até no banho a pessoa cai e pronto.
- Isso é.
Eram duas. Isso eu já disse. Mas não disse que eram más, talvez nem soubessem disso, mas sim, eram más. Mas acho que isso vocês já perceberam.
“Glupt”
- Ei.
- Oi.
-Tá bem?
- Eu tô.
- Engasgou?
- De leve.
Eram sós. Talvez por isso más. Dizem que a solidão amarga, mas a maldade conserva.
“Amargas em conserva?”
- Ei.
- Oi.
- Se eu...
A outra largou finalmente os talheres. A uma parecia realmente ter algo de importante a dizer.
- ...
- Se eu morrer antes.
- Que morrer, velha! Que morrer o quê? Esquece essa conversa de morte. Coisa mais tétrica.
Silêncio repentino. A outra parecia realmente ter concordado.
- Ei.
- Uhm...
- Soube de Marizete?
- Morreu?
- Ainda não.
- Câncer?
- No peito. Um tumor do tamanho de uma laranja. Vai ter que cortar.
- Virgem Santa. Os...dois?
E apertou os joelhos. Extasiada.

Thursday, September 07, 2006

O espelho


- Eu vou ficar no carro.
Foi a última coisa que me disse antes de desaparecer.
Estávamos quase chegando em casa, tarde da noite, e ela sentiu vontade de tomar um sorvete. De chocolate ou flocos.
Podíamos ter aguardado até o outro dia, mas eu conhecia minha esposa e seus desejos de grávida, o sorvete não poderia esperar.
Gostaria sinceramente de poder dizer que tive uma conveniente premonição, que senti, por uns instantes, que ela poderia estar em perigo. Mas não. Demorei-me em frente ao freezer e escolhi sem pressa. Numa maldita dúvida entre chocolate ou flocos.
Passei enfim pela porta automática assobiando uma canção antiga e andei em direção ao carro, guiado pela certeza de que a minha mulher e meu projeto de filho estariam em segurança. Dormindo, talvez, quem sabe? Ela andava tão cansada...
A sacola esparramou-se no chão quando percebi que não havia mais ninguém no carro.
Naquele momento, tive a assustadora certeza. Não precisei procurar em volta pra saber que tinha sumido. Que tinham sumido.
Foram meses de buscas, cartazes, perguntas. Meses de entrevistas com desconhecidos e noites em claro. Todas dolorosamente inúteis. Minha família desaparecera.
Quando tudo parecia perdido afinal e o germe da resignação começara a aflorar em meu peito, aconteceu.
Tinha chegado do trabalho especialmente cansado. Entrei no banheiro já acostumado com o silêncio no apartamento e me preparei para tirar a minha angustiada barba de três dias.
Dispus os apetrechos em meia-lua e, como seguindo um ritual, esguichei uma boa dose de espuma na mão, brandi a lâmina em direção ao rosto e ergui o queixo, encarando o espelho.
Foi quando percebi, no fundo do reflexo, a figura da minha esposa.
Deixei o aparelho de barbear cair na pia e congelei-me por alguns instantes. Pateticamente ainda tentei alcançar seu reflexo. Obviamente só tive em resposta o frio toque de um vidro gelado.
Foram apenas alguns segundos, logo o espelho refletia apenas a porta do banheiro, mas o suficiente para me perturbar para sempre.
Daquele dia em diante, ela passou a me visitar através dos espelhos cuidadosamente espalhados por mim ao longo da casa. Na mesa, em cima da televisão, na cabeceira da cama, jaziam pequenos portais de vidro, trazendo de volta o que eu tinha perdido. Refém daquele pequeno universo, minha esposa surgia sempre com um olhar resignado e doce, cheio de saudade.
Já andava a me acostumar com a situação, quando uma persistente dúvida minha foi respondida. Respondida assim que a minha esposa ergueu em seus braços até os limites do espelho, o meu filho.
Foi aí que a minha tranqüilidade partiu-se em cacos no chão. Precisava a todo custo encontrá-los.
Passei o resto daquele dia em claro, agarrado a um espelho de tamanho razoável, esperando o seu retorno.
Estava quase cochilando quando percebi que uma mulher me sorria do outro lado do vidro.
Não precisei perguntar. De alguma maneira estranha, ela sabia do meu desejo.
Olhou-me no fundo dos olhos e, cuidadosamente, balbuciou algo, apavorada.
Apertei minhas pálpebras sonolentas em busca de decifrar o que me diziam aqueles lábios.
Você
Entendi com dificuldade.
Não de
Como assim?
Passar
Ofegante, quase descontrolado, tentei tocar-lhe mais uma vez o rosto.
E me assustei, quando a superfície daquele espelho cedeu ao meu toque, como as águas de um lago. Encolhi os dedos, surpreso, mas o meu desejo foi mais forte e explicou ao meu cérebro o que tinha ocorrido.
Entrei com os dedos no espelho, e com as mãos, e com o braço.
Até que consegui.
Mas percebi então, apavorado, que naquela realidade alterada, um pálido reflexo do mundo real, não havia esposa, nem filho, nem esperança de retorno.
Porque eu sabia que do lado real, o espelho que eu segurava, partiu-se na queda, fechando para sempre minha última passagem.
“Você não deve passar” – Tinha dito a minha esposa.
Perdido naquele universo de reflexos, eu segui, enfim, caminhando em direção a minha solitária eternidade.