Tuesday, January 01, 2008

Aberto 24 Horas



No final das contas eu nunca entendi bem.
Não sei se era a tranqüilidade, o gosto pelo silêncio, aquela busca por paz que invade pouco a pouco as pessoas que dividem apartamento consigo mesmas.
Quem sabe a falta de paciência com filas e puxadores de papo anônimos?
Enfim, o fato é que eu sempre preferi fazer minhas compras à noite.
A escolhida era uma pequena lojinha quase em frente à minha
casa, convenientemente aberta vinte e quatro horas; indefectivelmente capitaneada por um velhinho coreano simpático, que eu escolhi chamar de Senhor Chen.
Além da proximidade, o que me atraía na loja era o seu inacreditável estoque: produtos fora de linha faz tempo, marcas obscuras, impronunciáveis, mas invariavelmente deliciosas sustentavam as prateleiras.
O estabelecimento tinha biscoitos, salgadinhos, frios, vinhos, cervejas.
E hoje, pessoas mortas.
Aconteceu quando eu olhava as revistas eróticas, tentando crer nas fotos que alegavam comprovar um ato sexual entre uma mulher e o seu pônei.
Foi quando chegou o primeiro.
De cara, vi apenas um mendigo ordinário, e não dei muita atenção.
Até que li nos olhos apertados do coreano um genuíno espanto.
Aquele mendigo não tinha a mandíbula.
Aterrorizado, o cérebro do coreano tentava a todo custo explicar-lhe o que era aquilo. Assim como o meu tentou.
Mas demoraram muito, afinal. Tempo suficiente para que o lerdo invasor agarrasse-o pela cabeça, enfiando os dedos dentro dos seus olhos.
Instantaneamente tomadas de vida própria, as minhas pernas correram pra dentro da loja levando-me pra longe daquela cena.
Só não rápido a tempo de tirá-la dos meus olhos.
E dos meus ouvidos, pensei, quando ouvi o estalar do pescoço do balconista.
Perdido entre fugir e gritar, percebi que agora não era só mais um.
Com a tranqüilidade quase patética da sua espécie, entravam os demais mortos.
A senhora loura, de tailler manchado de sangue.
O guarda de trânsito visivelmente atropelado.
A enfermeira com as costelas expostas.
E mais alguns, dos quais só vi os pés, pois mandei a dignidade às favas e me abaixei atrás do Doritos.
Grande ato heróico. Como se fosse resolver alguma coisa.
Mas se não resolveu de vez, pelo menos me adiantou alguns minutos.
Até o momento em que o Senhor Chen passou, abaixado rente ao meu nariz suado.
De quatro, jorrando sangue pelas órbitas, mas com um olfato muito bom.
Foi o que percebi, quando se precipitou sobre mim com os dedos em garras para provar dos meus olhos.
Só que eu andava minimamente preparado, e consegui derrubar-lhe usando um pote grande de Nutella bem no nariz.
Cansado de surpreender-me e sem tempo para entender, corri em direção aos fundos.
E me deparei com um providencial freezer.
Tranquei-me.
...
Correção.
Isso foi anteontem.
Ou a cinco dias, já nem lembro.
O que sei é que ando trancado faz muitas e muitas horas.
Com a graça de Deus, vim à venda com o meu casado de motoqueiro, o preto, e o termostato não acusa uma temperatura muito diferente daquela que permeia minha cidade.
Tudo bem que eu já aumentei a temperatura umas duas vezes.
Mais alguns graus e a comida estraga.
Já bebi quase toda a água, os iogurtes e os gatorades.
Faltam as carnes, os molhos e umas geléias de mocotó.
Que vergonha, Seu Chen, alguns iogurtes estão vencidos faz meses.
Mas creio que afinal, isso não vá ter lá muita importância não.
Não agora, quando eu percebo que o mendigo sem mandíbulas cruzou os olhos dele nos meus, meio por acaso, através da janela de vidro do freezer, pelo lado de fora.
E convocou os demais.
Quantos existem agora lá fora? É no que procuro não pensar.
Impossível.
Sabia o quanto eram lerdos, mas descobri agora o quanto são decididos, principalmente em grupo.
Não sei quanto tempo o reforço ao pé da porta, feito com congelados meio derretidos, vai durar.
O estalo do metal retorcido responde à minha pergunta.
Já no chão tento concentrar-me no jingle de um sabão em pó.
Mas a última rima me escapa, e quase volta.
Até que aquelas bocas já mortas orquestram seus dentes em uma última mordida.