Wednesday, April 12, 2017

Uma toada para a lua cheia

                                     
 La luna me esta mirando, yo no sé lo que me ve
                                                                                                 Simon Diaz

A verdade era que ninguém podia dizer com muita certeza onde ficava o povoado. Muitos se perderam ao procurá-lo. Aqueles que eram crianças quando a vila sumira, já tinham morrido. Os mais novos, pensavam nela apenas como sendo assim uma lenda que desapareceu no tempo, uma história que alguém contou.
Falavam de um lugarejo de pequenos comerciantes e pescadores. Os que viviam do mar não tinham do que reclamar: as areias eram refletidas por uma eterna lua cheia. Não sabiam explicar, mas nas noites de lá, a lua nunca minguava, a maré nadava alta e os peixes, abundantes.
Até que, meio por acaso, numa das maiores tempestades que se teve notícia, um homem, bem dizer, pois largo como a proa de um barco, invadiu - lhe as areias, carregando no ombro uma mulher, e nas mãos uma reluzente âncora. Dizem que a força dos seus passos sacudiu as jangadas adormecidas e rachou com força o sino da igreja.
Sem muitas explicações ou pedidos de licença, abrigaram-se em um afastado casebre velho, então abandonado. O que se conta é que ele limpou o que pôde naquela mesma noite, e deixou a âncora na porta, como uma lembrança do que se passou. A mulher, sempre de negro, com a chita velha esparramada pelo corpo, acabou por incender todas as suposições da aldeia, pois nunca foi vista além dos limites da propriedade, trazendo-lhe o marido tudo o que fosse necessário.
O homem logo arrumaria emprego de pescador; seu tamanho o ajudaria a puxar as redes, foi o que lhe disseram os mais velhos. Mas também assustaria os peixes, sussurravam os mais jovens. E acabou por abandonar o serviço quando um barco afundou assim que ele tentou subir, na sua primeira viagem de trabalho.
Os que sobrevivem em acanhadas comunidade, porém, sabem. As vidas, em verdade nunca se separam, como se o povoado, só junto, fosse assim o cardume, pra cima e pra baixo por dentro do mar. E querendo ser cardume, uma vizinha, procurou puxar um pouco de conversa, recostada ao muro, angustiada com aqueles que se afastavam. Deu o azar, porém, de ter sido surpreendida em algo que nem sabia que era proibido.
Com o estrondo dos pés ribombando na areia da praia, o homem arrastou a esposa para dentro, pelos cabelos, e deu-lhe uma surra que foi ouvida em toda a vila. Em verdade, porém, o que chamou mais a atenção de todos foi o que não se ouviu. Tapas, socos, sim, mas nunca gritos femininos ou mesmo pedidos de clemência.
Desde então ambos permaneceram isolados, tanto dos outros moradores como das plantas ou animais. Mesmo a luz do sol insistia em não brilhar sobre a casa, como se também tivesse medo daquele homem, quem sabe?
Perdidos, os moradores já não sabiam o que fazer, e souberam menos ainda quando começaram a perceber gordas lacraias, escorpiões e imensas baratas cobrindo as paredes do lugar sempre depois das rumorosas brigas do marido. A mesma vizinha, agora mais curiosa que caridosa, esperou a seguinte, e depois que o marido saiu, esgueirou-se pela janela com cuidado, e viu o que não queria: a mulher sentada na cozinha, com um balde entre as pernas magras, cuspindo dentro dele os animais que lhe cobririam as paredes, para depois arrastarem-se lentamente de volta ao vaso, o qual, já pequeno, transbordava a cada nova golfada negra.
Atônita, correu até o mercado e precisou, ou quis, contar a história. O povoado quedou-se bastante alarmado, sim, mas limitou-se a balançar as cabeças, mastigando a sua indignação. Quem iria enfrentar um homem que arrastou uma âncora? Todos se calaram, rogando em silêncio por uma solução.
Até que um dia, sem aviso, decidiu amanhecer mais rápido do que de costume. Os pescadores permaneceram em suas casas: o mar andava revolto como nunca, negando qualquer espécie de invasão. Apenas seus filhos, ainda livres, se aventuraram a brincar, rolando suas pequenas conchas na beira d´água.
 O sol já começava a querer se esconder quando as crianças correram por entre os portões desesperadas; tentando, aos soluços, contar uma história sobre um homem que tinha surgido de dentro das ondas e caminhado até a casa velha da mulher que cuspia escorpiões. Os pais emudeceram, assustados, preferindo desacreditar os pequenos. Mas fecharam-se em portas e janelas, como em uma estudada prece.
 Na única casa do povoado que não era coberta por plantas, a mulher varria a calçada, como se esperasse uma visita que não demorou a surgir. O homem que veio do mar apareceu-lhe de repente pisando sargaços e cheirando a sal. Pela primeira vez, ela levantou a cabeça e olhou alguém nos olhos. Percebeu então que ele os tinha vermelhos, como alguns peixes; como os dela. Altivos e decididos, entraram na casa. Delicadamente, o homem deitou-a sobre a mesa da sala, destruiu com dedos em nadadeira a chita rota e a penetrou. Seu grito correu por todo o povoado, do mercado ao cais, da igreja ao morro.
Subitamente, como se ouvissem, como se entendessem, as plantas lentamente passaram a cobrir as paredes da casa. E os escorpiões e baratas caíram ao chão, mortos, secos, virados em areia. E a luz do sol, timidamente, voltou a acariciar a poeira daqueles telhados.
Perderam-se um tempo abraçados em cima da mesa, até que um barulho firme e seco encheu o ar. Mas a mulher, pela primeira vez, não teve medo.
O gigante que afundou um barco entrou na casa, e furioso como nunca antes, quis levantar a mão para a esposa. Mas ele já não parecia tão grande, parecia?
Sentindo em seu peito magro o vento do mar, ela levantou-lhe a cabeça e o olhou fundo, com seus olhos rubros de peixe. O marido, uma vez tão forte e assustador, pela primeira vez, calou-se assustado.
Sem dizer uma palavra, o homem do mar pegou a sua mulher pela mão e saiu da casa lentamente, sem olhar para trás, enquanto as plantas das paredes aproximavam-se de ambos, em uma silenciosa despedida.
Partiram em direção ao mar, e furaram as ondas, para nunca mais voltar.
O marido? Bem, a vizinha conta que o marido, de uma hora para outra começou a encolher. Seria possível? Chorando lágrimas de arrependimento, diminuiu de tamanho a cada fungada, até se tornar um monte de escorpiões e lacraias; até se perder na areia. Dizem que as plantas destruíram a casa, transformando-a em um monte de ruínas onde, algum tempo depois, as crianças, um pouco menos livres, já brincavam sem medo.
E foi assim que tudo aconteceu. Ou quase. A cada vez que essa história é contada, aumenta-se um tanto, diminui-se outro. Mas hoje isso importa muito pouco, pois mesmo os que têm boa memória, não se lembram mais como a vila se foi.
Alguns juram que engolida pelas ondas do mar, sob a atenção impávida de uma mulher com olhos vermelhos, a qual sumiu num susto, serpenteando por entre as ondas seus longos cabelos, negros como sargaço