Wednesday, December 28, 2005

O acordo


“Sorte? Você acredita mesmo em sorte? Pois eu vou lhe dizer uma coisa: doutor, isso de sorte existe não!”.

O mendigo já falava meio alto, sentado na cadeira amarelada. Amanhecia.

“Você acha mesmo, de verdade, que a porra de um jogador de futebol que passou a infância todinha no meio da rua, fudido da vida, de repente é “descoberto”? Por acaso? Acaso? Sério mesmo? Hein? Tu acha o quê? Que um cantorzinho que perdeu anos, anos da vida dando a bunda pra um bar qualquer de beira de estrada de repente estoura nas rádios...por sorte? Ninguém nasce com a bunda virada pra lua, doutor!”

Ele já tomava bem a terceira dose da cachaça, de uma virada só. Seus olhos pareciam ainda mais vermelhos do que antes.

“Não existe, doutor. Não existe isso de sorte, de acaso, de carái nenhum. O que eles todos, o jogador, o cantor, todo mundo que se deu bem, o que eles conseguiram foi parte de uma coisa muito mais certa do que sorte. E muito mais simples...”.

Ele parou um pouco pra pedir mais uma dose. Era ano-novo. A manhã dum ano- novo em que eu tomei todas de novo e me perdi de todo mundo. Passei a virada irremediavelmente só, a não ser pela garrafa de vinho que eu trazia no colo. Fiquei sentado vendo os fogos pipocando no céu.

“Olhaí, doutor. Olhaí pressa gente toda passando na rua. Você acha de verdade que vai ter espaço pra todo mundo? Pra cada um? Balela”.

Os fogos tinham terminado faz tempo e o sol já vinha surgindo por dentro do mar. Era um novo ano, mas eu era o mesmo merda de antes.

“Digo e repito. Cada um que chegou lá, doutor, cada um que venceu na vida, teve um empurrão”.

Sozinho na praia, meio bêbado, meio derrotado, sem conseguir andar direito por causa do vinho, eu desejei do fundo do meu coração. Desejei que tudo fosse diferente.

“Mas a coisa é muito mais fácil do que parece, doutor. Cada um deles, doutor, cada um deles que disse sim pra um agente, pra um olheiro, já tava esperando...Ora, era um acordo, doutor!”.

Foi então que ele apareceu. Um mendigo. Catando latinhas na praia. Perguntando se eu queria mesmo que tudo fosse diferente. Meio brincando eu disse que sim. Queria que tudo fosse diferente.

“E você acha o quê, doutor? Que eu brotei na tua frente de surpresa? De repente? Sério mesmo?”

Foi aí que, meio sem saber porquê, acabei levando o mendigo pro bar. E ouvindo a sua história.

“Tu lembra não, doutor? Não lembra que queria ver tudo mudado?”.

Eu sempre tive essa coisa de atrair gente meio fraca do juízo. Bêbados, loucos, mendigos. Todos. Quando estava numa roda de amigos, bebendo em algum lugar, era sempre a mim que eles se dirigiam. Diretamente.

“...tudo mudado? E aí, doutor? Topa? Aceita? E a gente só pega a nossa parte depois, olhai que coisa boa! Muito depois. Depois de você ter curtido tudo, vivido tudo, doutor! Diz aí.”

Sorrio. Balanço a cabeça. Tentado a aceitar, claro. O que eu poderia perder? Como ele mesmo disse.

“...tudo, doutor! Diz aí. É só dizer sim, doutor, precisa nem assinar nada.”

Abro a boca pra dizer sim, mas, digo não. Digo não num sorriso. Sem saber porquê.

“É. Você quem sabe, doutor. Vou te deixar aí. Em paz. Feliz ano novo, doutor. Tudo de bom. E quem sabe eu não volto qualquer dia, doutor? Brigado aí pela branquinha...”.

O mendigo levanta sua carcaça velha do bar; sorri meio de lado, faz uma reverência com a cabeça e se manda, devagar.

O sol já bate forte, queimando meu corpo. Ele vai indo embora sob um estranho ruído. Um barulho seco. Como saltos altos? Não. Como cascos. Perco a respiração por alguns instantes. O mendigo parece ouvir e pára. Vira a cabeça pra o meu lado e sorri. Seus olhos estão vermelhos. Prefiro pensar que foi o vinho, que foi o sono, que foi o sol.

Quando eu estiver indo embora, vou perceber, jogado perto do bueiro, um bilhete de loteria. Vou guardar ainda por umas semanas, até que, enfim, confirme que ele está premiado.

O mendigo me explicou quase tudo. Só omitiu que, pra aceitar o acordo, não era necessário dizer sim.

Tuesday, December 20, 2005

Apartamento 304

Era o tipo de prédio para o qual você não olharia duas vezes. Difícil de achar por ser muito comum, tão bem inserido à paisagem que parecia ter sido plantado. Ou seja, feito pra mim.

Cheguei lá meio por acaso, numa dessas coincidências de filme. Estava procurando apartamento e entrei numa rua errada. Dobrei a esquina e o prédio pareceu brotar a minha frente. Poucos apartamentos, arborizado, garagem à sombra. Incrivelmente do jeito que eu queria.

Estacionei o meu arremedo de carro na portaria e chamei por alguns instantes. Nada. Deserto, como ficam alguns prédios em dia de domingo. Mas eu não desistiria fácil assim. Aproveitei pra dar uma olhada mais de perto. Chamei ainda por alguns instantes, mas nada. Testei o portão. Destrancado. Abri-o e fui entrando.

O lugar era muito mais lindo de perto. Tinha a beleza dos prédios novos, aquele clima de cidade cenográfica. Coloquei as mãos nos bolsos e fiquei admirando por alguns instantes a vista. Janelas perfeitas, algumas até com delicados vasos de plantas, sem roupas dependuradas. Tudo parecia se harmonizar. Talvez um pouco demais até.

Prédios novos. Aquilo não duraria muito. Logo viriam as chuvas, as crianças, os cachorros, as pessoas. Mas no momento era perfeito. Milimetricamente perfeito.

De repente, a janela do apartamento do meio se abriu. Surge então uma moça de cabelos amarelos. Linda. Incrivelmente perfeita. E retira o vaso. Não me viu. Retira o vaso e coloca outro no lugar. A cor do vaso colocado combinou ainda mais com o prédio.

Lentamente a coincidência vai se transformando numa obsessão. Eu precisava arrumar um apartamento ali. Precisava falar com alguém. Devia haver algum desocupado; teria que haver algum desocupado.

Escuto o barulho de um carro estacionando. Ao lado do meu. Um pequeno e muito bem acabado carro verde. Nunca tinha visto um modelo daqueles. Talvez seja europeu. A porta se abre e desce do carro um homem de terno marrom. Realmente impecável. Vem até mim sorrindo. Ele anda de uma forma esquisita. Rígida. Algum problema nas articulações, provavelmente.
Ele se aproxima e pergunta se eu gostei do que vi. Tento não demonstrar muito interesse. Sei como são os vendedores. Mas bastou ele me olhar pra perceber que eu mentia. O desejo de morar ali escorria dos meus olhos.

O homem de terno marrom impecável continua sorrindo. Na verdade ele não parou de sorrir desde que chegou. Vendedores...Mais uma vez pergunta se eu tenho mesmo certeza sobre o apartamento. Respondo que sim. Ainda sorrindo, me dá as costas e vai embora, caminhando em direção ao carro verde. Confuso, pergunto se terei de esperar muito, dar alguma prestação de entrada, algo assim. Ele responde que o apartamento já é meu. O de cima. Como eu gosto. E continua andando daquele jeito estranho. Grito-lhe perguntando quando poderei me mudar. Ele, sem olhar pra trás, me responde que eu já me mudei.

Como numa ensaiada propaganda de televisão, pessoas surgem de dentro do prédio. Inúmeras. As janelas se abrem, a vida começa. Pessoas rígidas e coloridas como o vendedor. Perfeitas como o prédio, as árvores, a garagem, os vasos. Tento falar, mas a minha garganta não produz nenhum som. Movimento-me um pouco, com dificuldade, até a avalanche de pessoas. Rígidas e coloridas, como eu.

Eu não pude notar, mas, do lado de fora do prédio acontece uma festa. Um lançamento de um condomínio fechado. Um lugar aconchegante, mas de última geração. Poucos lotes, muitos interessados. Um condomínio fechado representando em cada um de seus detalhes, cachorros, carros, pessoas, por uma maquete. Rígida e colorida. Perfeita.

Sunday, December 11, 2005

Inocentes



Sentada nas primeiras fileiras do ônibus, voltando do trabalho, tinha seu rosto voltado pro céu. A chuva começava a cair. Lenta, mas decidida, refrescando o infernal calor que fazia na cidade.

A sua frente estava uma mulher segurando uma criança de colo. A menina, sonolenta, mirava-lhe grandes olhos questionadores. Ela fez uma careta de puro nojo. Odiava crianças. Onde os outros viam candura e sinceridade, ela via idiotice. Muitas vezes maldade.

A menininha, subitamente, acordou de sua letargia e passou a prestar atenção na mulher. O seu sorriso sem dentes deu lugar a um pastoreio quase canino. Os olhos, outrora luminosos, mostravam-se opacos, de uma frieza metálica. Acusadores.

A mulher respirou fundo e virou o rosto pra janela, tentando prestar atenção à chuva. Mas ainda podia ver a menina pelo reflexo do vidro. E a menina podia vê-la. Queria vê-la. Permanecia firme e decidida no seu intento, no seu...Ela ia pensar ofício. Ofício! Que bobagem. Esses pequenos demônios não podem fazer isso, pensou. Perturbam, mas são idiotas demais pra. Prendeu a respiração ao perceber um loirinho sentado no banco ao seu lado. Tinha os olhos vidrados nela. Parecia vigiá-la.

Eram dois. Agora seriam dois. A mulher percebeu um sorriso cúmplice. Depois uma comunicação incompreensível. Pelo menos pra ela. Sentiu-se desamparada e sozinha. Quem iria ajudá-la? Virou-se pro lado ao acaso e esbarrou com o olhar resignado de um senhor. Parecia dizer que era muito tarde. Tarde demais pra nós.

A menininha deu um guinchado de puro prazer, no que foi acompanhada pelo loirinho. Uma rainha e seu vassalo. A mulher perdia aos poucos a respiração e apertava a alça da bolsa com força. Fechou os olhos por alguns instantes e pediu pra acordar. Mas não estava dormindo. Estava sim, num mundo que não era seu. Não mais.

O ônibus parou e a porta se abriu com força. A mulher reprimiu um pequeno grito ao perceber os que entraram. Dezenas de pequenas crianças vestidas da mesma forma. Lancheiras penduradas. Sapatinhos bem amarrados. Com frios olhos atentos, vinham numa discreta marcha. Um pequeno exército. À frente, não um general, mas uma prisioneira. Uma mulher que servia apenas para ajudá-los a atravessar ruas e alcançar objetos. Uma mulher que seria eliminada na hora certa.

Ela já tremia claramente ao sentir a travessia do exército. Todos cumprimentaram discretamente a rainha ao passar. O velho levantou-se, pediu parada e desceu. Não sem antes lançar-lhe um enigmático olhar. Um olhar de adeus?

Num instante, um dos pequenos soldados sentou-se ao seu lado. Sentinela. A mulher já trazia discretas lágrimas nos olhos. Precisava sair dali. Precisava arrumar um meio de alertar os outros. Queria acreditar que não era tarde demais.

Foi acordada dos seus devaneios pelo toque de uma pequena mão na sua. Era o sentinela. Talvez a avisando. Poderiam ler mentes? Provavelmente. Procurou pensar apenas na chuva caindo, mas era impossível. Arrepiou-se ao sentir outra pequena mão alisando seus cabelos. Mas uma. Sentada no banco de trás. A rainha a sua frente já não ria. O loirinho ao seu lado tinha o indicador estendido em frente à boca. Silêncio. Eles sabiam. De tudo.

Num gesto de desespero, empurrou as mãos que lhe perturbavam e pediu parada. Ao descer os degraus do ônibus, ainda deu uma olhada rápida aos adultos dentro dele. Pareciam tristes e apavorados. Tanto quando ela. Eles sabiam. A prisioneira que carregava a rainha tinha um olhar derrotado.

Assim que o ônibus partiu, pôde perceber todo o pequeno exército colado aos vidros, olhando pra ela. E sorrindo. O plano já tinha começado. Quantos bilhões de crianças haveria no mundo?
Correu até em casa sentindo a chuva cair sobre os seus cabelos, suas roupas. Ao chegar no prédio, subiu pelas escadas mesmo até seu apartamento. Apavorada, empurrou a chave na porta quase ao mesmo tempo em que o telefone tocou. Puxou o fone do gancho tentando acalmar-se. Crianças não conseguiriam discar, conseguiriam?

Era da clínica. A sua médica. Parabéns. Deu positivo. A senhora está grávida.

Deixou o fone cair, num grito desesperador. O pesadelo estava apenas começando.

Monday, December 05, 2005

O vencedor


Era sábado. O apartamento estava silencioso e escuro, como ele gostava. Ou como se acostumara. O estalar de seus dedos no teclado limitando-se ao seu escritório; a luz azulada da tela do computador espiando discreta por debaixo da porta. Como ele aprendera a gostar.

Era sábado à noite e seu telefone permanecia mudo; sua secretária eletrônica lhe sorria um definitivo “não existem mensagens”. Com o tempo, passou a considerar tal aviso como um “bom dia”, ou mesmo um cordial “tudo bem?”. Vez por outra, até porquê não era louco nem nada, passava uns bons minutos dialogando com esta mesma secretária assim que ela lhe confirmava a ausência de mensagens.

Era quase domingo quando a quietude do apartamento começou a berrar em seus ouvidos. Perdeu de leve o fôlego e clicou, trêmulo, no botão de saída da sala de bate-papo. A página lhe pedia para confirmar o código exibido, se quisesse entrar de novo. Era necessário; precisavam saber se ele era realmente uma pessoa de verdade. Sorriu patético. Como um grupo de letras e números confusos poderia dar-lhe uma existência real? Nem ele mesmo tinha mais certeza se era uma pessoa de verdade. As pessoas de verdade, num quase domingo como aquele, estavam dançando nas boates, bebendo nos barzinhos. Ora, as pessoas de verdade tinham mensagens em suas secretárias eletrônicas, nos seus celulares. Recebiam e-mails pessoais, não só malas diretas oferecendo programas milagrosos de emagrecimento.

Já era domingo quando ele sacudiu esses pensamentos, abriu o mais conhecido fórum de interelações de toda a Internet e agiu, meio sem pensar. Em instantes, criou. Nem gorda nem magra. Branquinha, de cabelos vermelhos que refletiam o poder de sua personalidade. Era o seu oposto.

O sol de domingo já começava a entrar de leve pela janela quando ele começou a checar seus e-mails, seus scraps. Surpreendeu-se ao encontrar uma caixa cheia deles, com assuntos como “meu amor”, “te amo” e “pra sempre” iluminando seu monitor; mensagens de amor rasgadas, abertas aos olhos de seus poucos amigos. Emocionado, as respondeu uma a uma antes de levantar-se da cadeira para começar o dia.

Naquela manhã, preparou a si mesmo um suntuoso café. Fritou ovos, queijos, presuntos, espremeu laranjas, e abriu o saco de pães assobiando a marcha imperial do Star Wars. Ele merecia. Era um vencedor.

Quando alcançava a última nota da melodia, já pronto para ligar seus propulsores imaginários e seguir desbravando a galáxia, ouviu o telefone tocar. Parou de súbito com a frigideira na mão e o bico do assobio. Agia, na verdade, como se nunca tivesse ouvido um telefone tocar.

Praticamente jogou a panela em cima da mesa e correu ao telefone que berrava. Puxou-o pelo fio e o atendeu. Do outro lado, uma voz feminina lhe perguntou como passou a noite. Já acostumado aos telemarkentings da vida, ele se desculpou e quase o recolocou no gancho. Até que a moça, por entre sorrisos, lamentou: não se lembrava dela? Sentiu o rosto queimar de vergonha. Como reconhecera a voz da mulher de sua vida? Sentou-se no sofá e começou uma longa conversa sobre tudo e nada, sentindo-se estranhamente à vontade. Tão à vontade que não atentou para o fato de que nunca tinha dado a ninguém seu número de telefone.

Era quase de tarde já quando a conversa acabava. Ele tinha a orelha adormecida e quente. Ou as orelhas, já que mudara constantemente o telefone de uma a outra. Mas as surpresas não acabaram aí. Antes de desligar, a mulher de sua vida perguntou-lhe se gostaria de fazer algo naquela noite. Algo tranqüilo e carinhoso. Um programa de casal. Ele concordou, de imediato. Ela se despediu com um beijo e marcou o encontro para as sete da noite, no apartamento dele.

O homem levantou-se, radiante, e deu alguns pulos antes de recomeçar a marcha imperial. Ele, definitivamente, merecia. Não era um vencedor, era o vencedor. Deu uma olhada na casa para começar a arrumá-la, afinal não faltava tanto assim para o horário estipulado. Estava plenamente satisfeito. Tão satisfeito que não percebeu: a mulher da sua vida não perguntara o seu endereço. Na verdade, ele nunca tinha dado a ninguém o endereço de sua casa.

Eram precisamente sete da noite quando ouviu a campainha tocar. Já arrumado e perfumado, com a casa reluzindo de tão organizada, foi até a porta e a abriu. Encostada na parede, apoiando-se no ombro direito e brandindo um bom vinho na mão, estava ela. Ele perdeu a voz ali mesmo. Sem perguntar se poderia entrar, a mulher invadiu o apartamento e deu início ao que foi a melhor noite de sua vida. A primeira.

Era quase segunda quando ele abriu os olhos, relaxado: era mesmo o maior homem de todos. Ah, se seus colegas de trabalho o vissem agora. Nunca mais o irritariam com brincadeira cretinas e piadas de mau-gosto. Ele sentiu o toque dela, arrepiou-se com a sua respiração no pescoço. Depois, um sussurro delicado pedindo para usar o computador. Precisava olhar uns e-mails meio urgentes. Ele concordou com a cabeça, caindo no sono outra vez, embalado pelo sapatear daqueles dedos magníficos em seu teclado. Estava com tanto sono que não percebeu que nunca, nunca na vida, tinha dado a ninguém a senha do seu computador.

Já era segunda quando a mulher da sua vida abriu o mais conhecido fórum de interelações de toda a Internet e procurou pelo perfil dele. Sorriu ao confirmar as suas comunidades: “solidão”, “morar só”, “engenharia da computação”, “star wars”. Buscou nos amigos dele e encontrou seu próprio perfil. Desceu o mouse e clicou em excluir.

Lentamente, o pano do lençol foi murchando como uma bola de aniversário. Em segundos, sem resistência, o tecido já cobria toda a cama. O homem tinha sumido para nunca mais voltar. Quem acessasse o seu perfil do fórum naquele instante, encontraria um rosto magro, amassado de sono, assustado, vestindo apenas um lençol branco, como um senador romano. Muito pouco sedutor, na verdade.

A mulher se despediu da foto com um beijo no monitor antes de o desligar de vez. Levantou-se e foi até a cozinha. Tinha muito o que fazer.

Thursday, December 01, 2005

1975


O sol foi entrando de leve pela janela até encontrar seu rosto. O reflexo o fez levantar-se rapidamente. Foi até o banheiro e deu a clássica olhada matutina no espelho. É, talvez não estivesse tão mal assim. Vestiu-se apressado e foi ao trabalho sentindo-se estranhamente disposto.

Ao contrário dos outros dias, executou seu massante serviço sem reclamações, e conseguiu até assobiar enquanto checava uns gráficos que mostravam o faturamento da empresa durante o mês em que estivera fora. Se inventaram alguma coisa melhor que férias ainda não apresentaram o projeto. Devem estar guardando para o Natal.

"Feliz ,hein? - disse a moça do cafezinho cujo nome ele não conseguia lembrar. Tinha cara de Patrícia.
"Pois é" - sorriu.
"E diferente." - ela parecia assustada enquanto saia da sala

Como assim, diferente? Ele se levantou e quase escorregou na bainha grande da calça. Porcaria vagabunda. Deve ter descosturado. Foi tomar um gole d'água e sentiu um braço segurando o seu.

"Procurando alguém, rapaz? Essa área é reservada. - era o Souza, da tesouraria.
"Deixa de brincadeira ,Souza." - disse entre um sorriso.
"Quem te deixou entrar?" - Souza não parecia estar brincando.
"Me solta, porra, você tá me assustando." - ele empurrou o amigo com a manga do paletó que cobria sua mão.
"Ô Pereira, vem cá um instantinho". - Souza chamava o segurança.

Desnorteado, foi até a porta do elevador e entrou, apertando o botão do térreo. Deu um pulo ao encontrar no espelho um jovem usando um paletó muito grande para o seu tamanho. O que aconteceu? O que aconteceu?

O elevador chegou ao térreo e ele correu mais, puxando com força a barra do terno já muito maior que antes. Tudo parecia grande e distante. As pessoas riam dele. Apontavam. Tinha de chegar em casa. Precisava. Antes que. Preferia nem pensar.

Pegou um táxi. O motorista parecia perplexo:

"Está sozinho, garoto? Cadê a sua mamãe?"

Tentou xingá-lo, mas sua voz soou fina. Voz de criança. Só conseguiu dizer o nome da rua e jogar uma nota alta na mão do motorista.

Saltou rápido do carro e tentou chegar ao saguão do prédio. Distante. Muito distante. Tentava, em vão, alcançar o botão do elevador ante o olhar assombrado do porteiro. Depois do terceiro pulo correu o mais rápido possível para as escadas. Não conseguia subir direito, tinha de abaixar-se e colocar as mãos. Uma por uma. Depois, nem isso.

Se viu coberto por um grande pedaço de pano. Olhou com a turva visão seus pequenos dedos e descobriu-se subitamente interessado por eles. Estariam ali há muito tempo? Passou a língua por dentro da boca, mas tudo que sentiu foi uma gengiva sem dentes. Vários vultos amontoaram-se ao seu redor. Imensos.
"Um bebê." - disseram as vozes. Distantes.