Monday, April 28, 2008

Asas



Falando assim parece até engraçado. Mas confie em mim. Não é. Pelo menos não é mais. Talvez no começo, mas mesmo aí não demorou muito tempo. Na verdade sempre foi engraçado de um jeito meio mórbido. Nervoso. Afinal, quantos homens você conhece que têm uma mosca?
Não por sujeira ou desleixo. Na verdade, no começo quase ninguém a notava. Só começou a chamar a atenção quando precisou ser enxotada à força da cara dele. Mas quem disse? Ele até que espantava no começo, mas era como um vira-lata de boteco. Até dava uma sumida, mas depois voltava rapidinho balançando o rabo. Ou as asas.
No começo as pessoas riram. Eu não. Sempre achei meio triste. Me dava uma aflição sem tamanho aquele desespero. Moscas podem ser asquerosas, ariscas, determinadas, quem sabe. Mas nunca engraçadas. Isso nunca.
Principalmente a dele. Aquela sim não tinha nada de engraçada. Especialmente depois. Depois ninguém achava graça. Porque ela não morria. Ele pensava que matava, agredia, esmagava, mas ela sempre voltava. Podia até pensar que era outra, mas ele sabia que não. Todo mundo sabia que não.
Não sou eu que vou explicar pro senhor como pensa gente de cidade pequena. As coisas esquisitas podem até ser divertidas no começo. Mas passa. E ninguém tem muita paciência pra ser simpático com gente esquisita durante muito tempo.
Ainda mais quando essa gente faz o que ele fez.
De cara, olhando assim, de longe, não tinha nada a ver uma coisa com outra. Sabe quando ele pensou que era a mesma mosca que o perseguia? Mesmo depois de tê-la matado com as próprias mãos? Não fazia sentido, fazia? Pois então.
Mas só que aquela gente sabia. Quando o filho do prefeito morreu de repente; uma morte besta, sem lá muita explicação.
Ele sabia. O povo sabia de quem era a culpa.
E ficaram mais enfurecidos quando ele pediu uma bebida no boteco seguido de duas. Duas moscas azuladas e insistentes agora. Barulhentas como abelhas.
Ele nem terminou o gole. Foi deixando o dinheiro em cima do balcão e tomando o caminho de casa. Seguido das moscas.
Os homens do bar responderam em uma barulhenta troca de olhares.
Sorte o pai do menino não andar por lá aquela noite.
E daí foi pra pior. Na outra semana era o barbeiro, enforcado de um jeito estranho na figueira da praça.
E suicida morria daquele jeito?
E os gêmeos de Helena, que nasceram em um matagal de braços, pernas e olhos que botaram pra correr o médico. Diz que viveu ainda uns cinco minutos. Tempo suficiente para fazer a enfermeira do parto nunca mais pregar o olho na vida.
E quanto mais mortos, tantos mais eram as moscas. Acusadoras como fúrias identificavam o assassino onde em uma imunda auréola aonde quer que fosse.
Até que decidiram que ele não ia mais a lugar nenhum.
Não, não as moscas.
A coisa foi rápida. Um tiro certeiro, dado pelo melhor revólver da região.
Abençoado seja.
Mas durou pouco, a bem da verdade.
Porque ontem nasceu aqui gado de duas cabeças. E um bando de corvos passou voando, cobrindo o sol em um tapete preto que não acabava nunca.
Certeza eu não posso dar, mas por isso mesmo eu prefiro não pregar o meu olho, pelo menos essa noite.
Porque a lua tá meio escura demais, mas eu acho que sei muito bem o que é esse zumbido meio surdo lá por dentro da plantação.
Tá ouvindo?