Saturday, November 18, 2006

E além


Dentro do bolso, as pedras chacoalhavam. Na mochila outras, maiores, dormiam sossegadas, mas vigilantes, como é comum às pedras.
Ainda assim sentia os solados a pequenos centímetros do chão. Pequenos. Mesmo imperceptíveis, se andasse rápido. Como fazia agora.
Resignado, sentou-se no banco da parada de ônibus, agarrando firme os dedos no frio do cimento.
Até que se viu sozinho, e, quase por brincadeira, deixou a gravidade erguer seu corpo à quase um palmo do chão.
Perdido naquela sensação, permitiu que as pedras rolassem dos bolsos, e, à medida que se erguia, abriu a mochila, largando a maior delas ao chão.
E subiu.
Como acordando de um sonho bom, sofreu um lampejo de racionalidade e procurou agarrar-se ao teto da parada com a ponta dos dedos.
Mas tinha chovido, e a água escorregou nas suas mãos.
E o vento.
Sem outro remédio, livrou-se da mochila, dos tênis, da calça.
Ocupados com relatórios e almoços e relógios de ponto, as pessoas não perceberam. Mas ele subiu. Seguindo rápido em busca do azul, até se tornar um ponto negro.
Já em cima, foi confundido com um satélite, um avião. Foi confundido com uma estrela.
Sem conseguir retornar ao chão, ainda sobe cada vez mais alto naquela estrada infinita.
Sem conseguir retornar ao chão, o corpo já definha.
Morrerá amanhã sem água ou comida.
Mas feliz.