Wednesday, February 22, 2006

Pé no chão


Assim que colocou o pé no chão ao acordar, percebeu algo diferente. Culpou o sono, deitou-se de novo por uns minutos e tentou mais uma vez começar o dia.
Mas ao olhar pra baixo, enfim entendeu. Seu dedo mindinho havia sumido.
Piscou os olhos e esfregou-os fortemente antes de ter coragem de olhar de novo. Por fim, com o coração aos pulos, espiou por cima do lençol que lhe cobria o rosto e então viu. Na verdade, não viu. O dedo permanecia desaparecido.
Instintivamente, com toda a força que a adrenalina esguichava em suas veias, conseguiu encostar o pé a centímetros do seu rosto para analisar o desaparecimento mais de perto.
Não havia cicatriz, ferimento, nada. Apenas um espaço perfeito, como se nunca tivesse morado um dedo por lá.
Eram quase oito horas e ele já precisava estar no trabalho. Pensou em ligar dizendo que faltaria, mas era um péssimo mentiroso, as pessoas nunca acreditariam que ele estava doente. Pensou por uns instantes em dizer a verdade e riu do próprio ridículo: ”não posso ir trabalhar porque perdi meu dedo”.
Tentou ficar em pé. Bem, não foi tão difícil assim. Andou um pouco e percebeu que conseguia se movimentar satisfatoriamente sem o dedo mindinho.
Foi tomar uma ducha. Já era muito tarde, sairia sem o café da manhã mesmo.
No trabalho, estranhou a falta de bronca do chefe. E ficou duplamente feliz ao notar que não havia novos processos em sua mesa.
Passou o dia ocupadíssimo, fazendo absolutamente nada.
Era quase de noite quando chegou em casa. Apenas nesses momentos, em que escutava o eco do ruído da chave no apartamento vazio, é que pensava em comprar um cachorro. Uma pequena e barulhenta máquina de receber.
Jogou-se no sofá e ligou a televisão. Assistiu às manchetes do jornal tirando a camisa, desabotoando a calça. Só quando já estava para tirar a meia, é que se lembrou do dedo perdido. Passara o dia tão atarefado no seu ócio que se esquecera completamente do fato.
Segurou de leve as pontas da meia e puxou-a.
Foi aí que viu. Ou melhor, foi aí que não viu.
No seu pé direito, restava apenas o dedão.
Colocou a meia de volta, sem conseguir respirar direito. Subitamente, veio-lhe à cabeça uma certeza assustadora e ele, num misto de coragem e angústia, arrancou a outra meia.
Faltava, no seu pé esquerdo, o dedo mindinho.
Como não sabia o que fazer, decidiu continuar a assistir o jornal. E acabou por dormir, meio vestido ainda, em frente à televisão.
Acordou com o sol do outro dia fazendo cócegas em suas pálpebras. Olhou o relógio de pulso que marcava umas angustiantes nove horas. Apoiou os braços no sofá e fez força pra levantar-se.
Mas caiu no chão. Porque não havia uma perna direita para apoiar-lhe.
Do chão frio, pensou que aquele sim seria um bom motivo para faltar ao trabalho. E ficou estranhamente feliz por uns segundos: não precisaria mais se preocupar com os dedos sumidos.
Aquele dia foi o primeiro. Hoje, quando se lembra dele, sente uma dolorosa saudade. Foi uma semana aterradora. De perdas. Primeiro os dedos, depois as pernas, um braço, outro.
Agora só lhe restava o torso. Como seria seu fim? Haveria um fim? Sumiriam primeiro com as orelhas, como num desesperador jogo de forca? Ou seriam objetivos e levariam logo a sua cabeça?
Mas já eram onze e meia da noite e o sono começava a apagar-lhe os olhos. Suas dúvidas não durariam muito tempo.

Friday, February 10, 2006

Temos vagas


Encostou a cabeça de leve no vidro do ônibus e sentiu a vibração da janela espalhar-se por todo o seu rosto. O relógio grande da praça borbulhava trinta e oito graus e ele estava muito cansado. Cansado demais. Puxou a tampa da bic vermelha com os dentes e a empurrou no fundo da caneta. Apoiou com dificuldade os classificados do jornal nos joelhos e continuou a procurar.
Passou os olhos pelas colunas mais uma vez e ainda não encontrou nada. Os anúncios pediam experiência, mas também limitavam a idade em até vinte e cinco anos. Na sua cabeça, experiência e vinte e cinco anos de idade eram coisas opostas. Mas talvez ele já estivesse velho demais para opinar sobre isso, afinal. Limpou o suor da testa e retornou à sua busca.
Subitamente, parou o olhar sobre um anúncio disposto no canto esquerdo do jornal. "Temos vagas". Procurou alguma limitação. Idade. Sexo. Cor. Nada. Checou o endereço. Estava bem próximo.Fez vários círculos vermelhos ao redor daquelas palavras. Para dar sorte.
Levantou-se rapidamente e pediu parada. Passou com dificuldade pelos outros passageiros e alcançou a porta de saída. O vento quente bateu em seu rosto e ele sentiu-se esperançoso pela primeira vez em muito tempo. Atravessou a praça muito rapidamente, procurando o número do prédio. Esbarrou numa construção antiga. Meio escondida. Muitas vezes estivera nos arredores daquela praça, mas nunca tinha notado o local, apesar da sua imponência. Procurou um automóvel por perto e arrumou os poucos cabelos pelo reflexo do retrovisor. Tentou não notar a sua cara de enfado.
Receoso, entrou no prédio. As marcas de infiltração serpenteavam pela parede de pintura gasta. Tirou o jornal dobrado de dentro do bolso e procurou pelo número da sala. Percorreu um corredor escuro ouvindo apenas o bater dos seus sapatos no piso de madeira. Teve muita sorte de encontrar o local, pois não havia ninguém para ajudá-lo. Na verdade, não havia ningúem mesmo no prédio. Ele culpou o horário de almoço.
Finalmente parou em frente ao número certo e, por alguns instantes, sentiu-se participando de um deprimente programa de auditório. Segurou na maçaneta da porta, respirou fundo e abriu. Ao entrar, já havia alguém sentado no bureau de madeira, encarando-o. "Estávamos esperando por você" — disse. Ele entrou e sorriu, fechando a porta atrás de si.
Seu grito ecoou pelo prédio vazio. Definitivamente, era hora do almoço.
***
O papel voou rápido, atingindo o rapaz em cheio. Só quando ele o arrancou do rosto, notou que era um pedaço de jornal. A página dos classificados. Abriu por curiosidade e viu um anúncio destacado em vermelho. "Temos vagas" — dizia. Procurou alguma limitação e não encontrou. Sorriu. Talvez aquela fosse a chance de sua vida.