Saturday, February 24, 2007

Em frente



Não há nada a fazer
Becket


Com as mãos nos bolsos, esperava o outro se aliviar sobre a mata que invadia a estrada. Em pé no acostamento, mirava o longo declive da estrada. Longa. Sem rastro de carros, de caminhões ou animais. Só o ruído derramado da torrente de mijo despejando-se sobre a vegetação.
- Merda.
- Hein?
- Suspirei só.
-Tu suspira demais.
E sacudiu o pau, jogando-o meio de lado dentro da calça desbotada.
-Tu acha que se o cara correr assim, por dentro dessa mata, o cara chega onde?
- Tu pensa muita merda.
E sorriu, caminhando em direção ao carro velho. Que chaleirava a água do radiador.
Pela força do hábito, deu um chutinho de leve nos pneus. Meio vazios, totalmente carecas. Mas fortes.
- A gente chega ainda hoje?
- Contigo falando merda assim chega não.
- É foda mesmo. E fui eu quem parou pra mijar?
- Devia mijar na tua boca.
- É parou?
- Hein?
- É parou ou parei?
- Sei lá.
Do lado de fora se sentiram meio desertos.
- Entra.
- Hein?
- Entra no carro.
- Tu ainda sente dor?
- Entra no carro.
- Sente?
- Vez por outra. Mas disseram que melhorava. Antes de piorar de vez.
A última palavra veio meio engasgada.
- Tu confia nele?
- Nem sei.
- E deixou tudo assim?
- Já te disse.
- E se der errado?
- Entra no carro.
Mais uma vez pararam à porta, com os trincos na mão.
- Se você não entrar agora, me mando.
- E se você morrer?
- Eu me mando!
- Dá a volta, cara, vamos embora. Vamos voltar.
O outro só sorriu, com ironia.
- Entra.
- Tá.
Dentro do carro, não conseguiam se mover.
- E tu queria que eu fizesse o quê?
- Num sei, a vida é tua.
Silêncio. Sem mijo pra distrair.
- Tu quando vê assim uma plantação ou até um descampado. Dá vontade de sair correndo não?
O outro o olhou.
- Rapaz, tem horas que eu tenho certeza de que tu é viado, sabia?
- Foda-se.
O outro sorriu.
- Vai dar certo.
- É.
- Vai dar certo.
- Vai.
Silêncio. Nem cigarra ou pássaro ou máquina.
- Tanto faz.
- Hein?
- Parou ou parei.
E seguiram. Parados, dentro do carro. Esperando o sol terminar de descer do céu.

Monday, February 05, 2007

Enquanto dure


Say you, say me
Lionel Ritchie



Meu amor.

Hoje faz exatamente trinta dias que você deixou a nossa casa. Sei disso porque vi, de relance, o calendário magnético da comida chinesa pregado na porta da geladeira. Um mês de atraso, de saudade, de cansaço.

Não vou mentir pra você. Nem conseguiria. Você me conhece pelo meu jeito de colocar a chave na porta, lembra? Ainda giro o trinco antes de forçar a fechadura, numa esperança meio boba dela estar aberta.

Quando a gente ficou frente a frente na porta do prédio, você me surpreendeu. Pela primeira vez na vida, me surpreendeu. Não esperava nunca que fosse realmente atravessar aquela rua. Que não fosse se virar ao ouvir o seu nome, como uma cadela velha acostumada a casa. Esperava que tudo se resolvesse na cama, nas nossas promessas de nunca mais. Lembra?

Ainda esperei. Duas três quatro noites. Já se embriagou sozinha, de Nova Schin, brindando no vidro da TV com um Jô Soares reprisado?

Foi aí que te liguei. Os meus dedos correram pra cima do teclado, refazendo aquele caminho tantas vezes...Não sei, não sei. Tô falando merda já.

Você poderia não ter atendido, não poderia? Fala a verdade. Poderia não ter aceitado o convite. Quem entra no carro de um bêbado as três da manhã? Qual foi? Pensou que tudo ia dar certo? Como numa Tela Quente de Natal dublada? No bloco final eu iria te pedir perdão com os créditos subindo?

Tentei sinceramente me conter. Mas o macio do teu cabelo foi me dando uma ânsia, sabe? Uma vontade de jogar tudo pro ar.

E falando a verdade, não foi tão difícil assim. Você nem reagiu. Olhou dentro do meu olho ainda com um restinho de pedância. Existe essa palavra? Pedância?

Nem tinha ninguém vendo. Tão fácil. Tão mole. Pão sovado derretendo nos meus dedos afundando. Afundando. Como você, nas pedras.

Agora tô aqui. Um mês, acredita? Tá passando “O Sol Da Meia-Noite”. Sabe se o Baryshnikov ainda tá vivo?

A verdade é que não é só você que me conhece por dentro. Chave. Andar. Te conheço pelo andar. O som de seus passos. Molhados.

Nem preciso fuçar no olho mágico pra saber que você tá agora aí na porta. Nem tão linda mais. Meio sem jeito apoiando o resto do rosto com as mãos. Tentando andar com o que sobrou das pernas. Arrastando uns fiapos de sargaço e restos de plástico jogados no mar.

Entra, a porta tá aberta.

A gente tem muito, muito o que conversar.