Wednesday, May 28, 2008

O bar


Quando a gasolina está quase no fim e a reserva nunca esteve tão mirrada. É justamente neste momento que você deve continuar. Dobre a Avenida Principal, à esquerda, e continue por dentro da estrada de barro até você achar que se perdeu.
E quando o carro finalmente desistir e morrer, sem qualquer sinal de combustível. É justamente neste momento em que você deve descer. Talvez nem precise fechá-lo. Afinal, o local é distante e nem mesmo os ladrões se aventurariam a meter os narizes por lá.
Ande mais alguns metros e você vai dar de cara com ele. Um lugar difícil até de narrar. Mais aconchegante que antigo, mais pacífico que parado. É o bar. A placa com o nome caiu faz tempo e esqueceram-se de colocá-la. Desistiram afinal, porque no fim das contas todo mundo tinha o seu nome, cada um se lembrava do seu modo. E ficou por bar mesmo, afinal.
A porta é de madeira velha, justamente como era a porta da sua infância. O dono te recebe na chegada com a sua bebida preferida nas mãos. E daí que o copo não é limpo? E daí que o dono não é limpo?
A iluminação é inacreditavelmente perfeita e parece balançar ao som da música que toca na vitrola. O som daquela banda de nome o qual você nunca se lembra quando quer comprar o cd.
Como se lhe ouvisse, como se lhe entendessem, a música da chegada ainda é repetida umas boas duas vezes. O dono se desculpa, vitrolas velhas, mas você não liga. Três vezes é a medida perfeita para se ouvir aquela música.
A sua bebida preferida acabou, mas a senhora do balcão estende-lhe outra taça, caneca, com a sua bebida preferida ainda quente, ainda fria.
E você bebe de um gole.
Num pulo discreto, sobe o banco alto e assiste ao segundo tempo da final de seu time de coração. Assista ao melhor goleiro rebater um pênalti praticamente feito e o seu time ergue a taça. A cena é mostrada de vários ângulos e cada vez parece melhor, não parece?
Você sorri satisfeito e quase pensa que é uma alucinação ao sentir o cheiro de seu tira-gosto preferido trazido com alguma graça pelo dono. Você come de colher mesmo enquanto vê todo o time ser entrevistado, naquela euforia típica das vitórias.
A bebida acabou, mas a senhora do balcão estende-lhe outra, quase fria, pelando de quente, como você gosta.
E você vai até a porta do bar, sentindo no rosto o balançar letárgico das ondas do mar. Naquele bar nunca amanhece.
A última sílaba do seu pensamento é pontilhado pelo violão do seu amigo cantando as músicas as quais você mais ama. E você sente o puxão delicado da mão dela chamando-o pra sentar. Você percebe que ela tem lágrimas nos olhos. Ela sorri, meio sem-graça, sacudindo a cabeça.
É cedo ainda no bar. O dono senta-se na mesa junto com vocês e ainda joga umas boas partidas do seu jogo predileto.
Subitamente você escuta o estalar das bolas de bilhar. Seus amigos o chamam pra uma partida, mas só por brincadeira, porque naquele bar mesmo você é o melhor jogador da região.
E você quase se esquece de perguntar onde está a vitrola para a sua companhia daquela noite.
Ela não sabe do que você está falando.
Porque ainda é cedo no bar e eles, como sempre, têm uma rede velha e confortável esperando por você.
Você sabe que não deve deitar-se, sabe que deve deixar o bar agora, mas como resistir, se pode pendurar a conta, pagando-a quando puder, em suaves prestações anotadas no caderno velho do dono?
Como resistir?
Se o violão do seu amigo toca agora aquela balada baixinha, feita de poucos acordes, que você enganava os outros quando tocava?
Recostado na rede e olhando o fundo do canavial, você quase se esquece de perguntar pelo mar que andava por ali não fazia muito tempo.
Quase se esquece de procurar a chave, ou mesmo a fechadura da porta à sua frente. Ou o lugar onde deveria haver uma porta, agora fechado a cimento e concreto, por dentro.
Porque o lugar se perdeu. Depois do que houve não quiseram se aproximar do bar. Ninguém. Já faz muito tempo.
Não foram poucas as vezes em que você apareceu na porta, recostado a janela, convidando as pessoas a entrar. Pessoas que não te ouviam, pessoas que, vez por outra, fugiam apavoradas.
Até que decidiram fechar as janelas com tábuas, lacrar a porta com cimento.
Mas como, se você ainda ouvia o barulho do mar? Como, se você ainda ouvia o violão e a vitrola?
Você ganhou algumas partidas de sinuca, não ganhou?
Claro que ganhou.
Olhe na televisão, o goleiro ergue a taça.
De repente, sente roçar nos seus dedos um copo cheio arremessado pelo balcão pela senhora.
Tome mais uma. Você sabe que no bar nunca amanhece.

Friday, May 16, 2008

Em segundos


Lá bem no fundo está a morte, mas não tenha medo
Cortazár
Dez e quinze – marcava o relógio grande da sala.
Imponente e decidido, o objeto fazia coro com o estalar dos dedos dos funcionários em seus teclados.
Com o deglutir da água no filtro.
Com a compassada pisada dos saltos, dos sapatos.
Uma hora e quarenta e cinco ainda para o almoço, para o banho, para o sono.
Dez e quinze.
Normalmente absortos em seus serviços, eles àquela manhã agiram diferente, hipnotizados pelo arrastar vacilantes dos ponteiros.
Limparam gavetas, organizaram pastas, reviram relatórios, leram e-mails.
Mas o tempo não passou.
Angustiada, a secretária roía as unhas, já aflita demais para fazer o tempo passar da forma mais simples e produtiva. Trabalhando.
Dez e quinze.
O rapaz das entregas já não tinha o que entregar àquela manhã e parecia respirar fundo a cada passo do relógio.
Mas os ponteiros.
Os ponteiros não pareciam... caminhar.
Pareciam?
Impressão.
Foi o que o contador notou, com o seu pragmatismo habitual. Mas não repassou aos outros. O achariam ridículo. E ele não saberia lidar com isso. Haveria de surgir alguma explicação lógica. Qualquer explicação lógica.
Um pouco menos racional, a estagiária já respirava fundo, pesado, ao voltar do banheiro, onde lavou o rosto. E precisou sentar-se.
Maternal, a secretária ofereceu-lhe um copo com água.
Agarrada ao vidro com as duas mãos, precisou de toda a sua tranqüilidade para.
Dez e quinze.
Tec. Tec.
Estalava a máquina de calcular produzindo papéis de contas inúteis.
Tec tec.
Sapateavam os dedos da secretária sobre o teclado digitando intermináveis e ilegíveis sentenças.
Tec tec.
Batiam os dentes da estagiária.
Dez e quinze.
É o que clamavam todos os relógios em computadores, pulsos, paredes.
Dez e quinze.
Corajoso, dirigiu-se o entregador ao vidro da janela, afastando a persiana, assustando a secretária.
A espera pela abertura da cortina roubou a atenção de todos na sala, substituindo os imóveis ponteiros do relógio.
Mas, nada.
Não havia nada de peculiar no mundo lá fora. As pessoas continuavam as suas vidas, correndo, andando, pegando ônibus, cortando outros motoristas no trânsito.
Nada de peculiar a não ser o fato, sabido por todos, que eram irremediavelmente dez e quinze da manhã.
A chegada daquela informação aos cérebros de todos, como uma tétrica espécie de consciência coletiva foi demais para alguns.
A estagiária quase não conseguia conter as lágrimas.
Mas o bom senso falou mais alto, afinal.
Ora, todos ali ansiavam por uma promoção e não seria uma situação como aquela que colocaria tudo a perder, não é mesmo?
Respiraram fundo. E voltaram a refazer os seus afazeres.
- A hora não passa. – foi o que se dignou a dizer a secretária.
Os outros responderam em resmungos.
Mal sabia ela o quanto estaria certa.
Foi o que, sem saber, pensaram todos naquela manhã. Presos eternamente em uma prisão de vidro, de onde nunca mais conseguiriam fugir.