Wednesday, May 16, 2007

AC/DC*

“Drugstore. 24 hora.”
É o que dizia o letreiro meio apagado em cima da farmácia.
Teresa procurava acender o cigarro protegendo com as mãos o isqueiro do vento frio.
Tec. Tec.
Nada de chama.
Esgotada, rodava o cigarro apagado mesmo entre os dedos.
Até que, meio por acaso, mirou o chão e viu.
Sem o menor motivo, absolutamente desambientadas, duas cobras rolavam no chão. Enroscadas e alheias à solidão daquela noite.
Sem aviso, Teresa foi imediatamente transportada de volta em dez (quinze?) anos.
E a noite da cidade foi invadida por um sol de rachar. E aquele breu faiscante no dorso das cobras virou um verde. Verde-cana-de-açúcar.
Eram todos meninos de novo, correndo na plantação, usando, no máximo, uma peça de roupa cada.
Perdido em pensamentos, como sempre, Tarcísio foi deixado pra trás na corrida ao açude. Nunca acreditou muito nessa coisa de mulher do padre.
Tão perdido estava que quase tropeçou nas duas cobras enroscadas pelo meio do caminho. Negras, reluzentes como pneus.
Hipnotizado, quebrou um pedaço da cana pra que pudesse sentir, através das doces fibras, a pele fria daquelas duas. Daqueles dois?
Mas não tinha lá muito traquejo, Tarcísio, e acabou separando, meio sem querer, as cobras.
Já tinham se passado quinze (vinte?) anos. E Teresa ainda tentava acender o cigarro.
As cobras, enroladas de novo, pareciam se divertir bastante. O salto da bota era seguro o suficiente. Num esgar de pernas, poderia simplesmente invadir a orgia e voltar a ser Tarcísio.
Mas o aluguel vencia na próxima semana. E a gente nunca se sabe, né? – foi o que passou pela sua cabeça.
Até que conseguiu acender o cigarro. Enquanto o salto fazia eco na calçada , sumindo na rua meio deserta.
“Drugstore. 24 horas”
Era o que dizia o letreiro.


*Baseado na lenda grega de Tirésias.