A
linha de Sanharó
Para
Janine Vaz, que me contou essa história
- Tô
com medo.
Quem
falou foi a menorzinha; todas as três estavam com medo também, mas quem disse
que abriam a boca? Por que danado não tinham dito ao cumpadre da avó que iam
era pra Pesqueira? Por que danado não falaram do aperreio quando viram se
avizinhando as torres da cidade?
- Se
agonie não, Candinha, a gente chega em casa daqui a pouco.
A
outra olhou e disse tudo. Elas conheciam a cidade de cima do cavalo, de dentro
do jipe do pai, mas ali? Cercadas de breu pra tudo quanto era lado?
- Jane, eu quero pai. – sussurrou a do meio,
aproveitando a abestalhação da menorzinha com um imbuá.
- A
gente vai encontrar com pai logo, menina, deixe de coisa – Jane dizia mais pra
ela mesma do que pras outras duas.
- Tá
ficando tarde, menina, táis doida, é? Olha o céu aí.
Jane
olhou pra linha e tremeu. Um caminho que nem merece esse nome. A cama de ferro
comprida, comprida. Dos lados só água. Se viesse o trem, ela mais Deda pulava,
mas e Candinha? Pouquinha, Jesus, maguinha de doer, nove com corpinho de cinco,
fazia como?
-
Vamo pela estrada. – decidiu Jane.
- Pela estrada pai disse que não era pra ir. Tem
gente ruim. – Candinha tinha esquecido do imbuá.
- Tá
ficano doida, Jane? – sussurrou Deda.
-
Não, tô não, ó pra isso. Uma linha de trem e água, lá embaixo! Tu sabe voar, Deda?
- Eu não sei voar- chorou Candinha.
Ali,
Deda percebeu onde estava. Onde estavam.
- Passando da linha a gente pode andar em paz.
- Vai ver pai? – ainda Candinha.
- Vai ver pai.
- Então vamos?
- Pra onde?
- A
gente tem que ir pela estrada, tem jeito não.
-
Vamos não!
- É
só um pouquinho...
-
Pai disse pra não ir.
- Pai também disse que não era pra vir pra
Sanharó.
Jane
tava acostumada a ser contrariada, mas ali teve jeito não.
Pegou
as duas pelos cabelos e arrastou pra longe da linha. Arrastou pra perto da
estrada.
Nem
demoraram muito não. Chegaram sim na beira da estrada, mas ficaram pensando se era
isso que queriam.
Embaixo
da luz da lua, a rodagem parecia ainda meio pior que a linha de trem. Deserta,
fazia falta a zuada da água pra distrair.
-
Pra que lado? – A voz de Candinha escorreu por cima das pedras do asfalto seco.
- Em
frente toda vida.
Jane
tentava mostrar uma certeza que não existia.
Mas
era a irmã mais velha e seguiram então em frente.
Na
noite calada, só o chinelo das meninas cantava. Candinha logo se esqueceu da
saudade e encontrou um latejado bem direitinho. Num instante tavam as três
cantando a mesma música que a avó gostava de cantar com as outras velhinhas em
dias santos.
Era
muito bom cantar assim, alto, forte, sem ninguém pra rir delas ou pedir pra
cantarem baixo, ou calarem a boca, ou...
O
cavalo.
...ou...
O
homem no cavalo.
As
meninas sentiram que era como se fosse uma mão toda de gelo arrochando o
coração por baixo dos vestidos finos.
-
Mas olhe... – sussurrou o homem.
Meio
sem sentir, Jane parou as irmãs com as mãos e ficou bem em frente a elas,
sentindo a barriguinha seca de criança de Candinha subir e descer.
- É
tarde, meninas.
De
novo e de novo. A voz daquele homem era até ruim de contar. Uma coisa feia,
grossa, cheia, era como se tivesse sempre rindo de você, ele tava bem ali, na
frente, mas era como se a zuada viesse de todo lugar.
-
Conheço vocês, meninas.
E
riu.
- Sou amigo de seu pai.
Digo
sem medo de errar, se acharam ruim a voz, a risada conseguia ser bem pior. Era
mais do que zombeteira, era, ruim.
E as
meninas se lembraram do conselho do pai.
- Cândida,
Janeide e Janine, as galegas, aqui em Sanharó...
O ó
da cidade ficou gritando pela estrada deserta.
-
Cheguem meninas, deixo vocês em casa. Subam aqui no cavalo, ele é bem mansinho.
Pela
primeira vez Jane olhou o estranho bem nos olhos. E sentiu as canelas magrinhas
baterem umas nas outras. Eram vermelhos e quentes, e da boca fina a língua se
batia como louca.
Mas
mesmo dali, de longe que estavam, pensou se não seria melhor que fossem mesmo,
que subissem no cavalo e fossem pra casa.
Era
bem fácil, só esticar os dedos e logo estariam dormindo na cama quentinha, com
o couro doendo sim, mas em casa.
Só
esticar os dedos.
- Jane!
Era
a menorzinha.
- Vai não, Jane!
-
Vem sim, é só você esticar essa mãozinha...
Aí
que a música da avó veio na cabeça da menor e Deda continuou. Era como se
tivessem despejado alguma coisa bem molhada e quente no ouvido dele. Gritou,
urrou como um bicho, tentou cobrir as orelhas com as mãos.
Sacudia
a cabeça...
Cabeça
comprida, comprida...
Com
as mãos em garras, feito bicho.
E na
cabeça.
Chifres.
Deda
lembrava sim da música da avó e ajudou Candinha.
Até
que o homem e o cavalo pipocaram naquela estrada deserta pintando no chão da
encruzilhada uma mancha preta e fedorenta, como aquelas que os meninos faziam
em dias de São João.
E
amanheceu.
A
estrada era bem diferente pela manhã cedinho, e quase se ouvia o piado dos bem-
te- vis longe, longe.
As
meninas ainda andaram muito pra chegar em casa, mas nunca ficaram tão
satisfeitas em encontrar as torres das lápides naquele cemitério tão pequeno.
A
cidade já esperava angustiada. O pai, vermelho e de olhos arregalados, correu
como nunca num ajoelhado abraço.
-
Painho, me desculpa, painho!
Mudo
de felicidade, o pai pensava demais, mas a emoção lhe matava a voz.
-
Entre, menina, entre, descanse, a gente conversa depois...
Aliviada,
Jane estendeu a mão para as irmãs.
- Que danado é isso? – assustou-se a
mãe.
- As
meninas.
Com
a mão na boca para ajudar a engolir o choro, a mãe teve coragem afinal.
- Pare
já com essa história, Janine! Tu sabe! Tu é minha filha! Só uma. A única das
três que vingou.