Friday, March 24, 2006

A Santa Morte


O fósforo venceu com dificuldade o atrito da caixa e pariu a chama, que iluminou discretamente a resistente penumbra da sala. Ela encostou de leve o pedaço de madeira crepitante ao pavio da vela. Depois o sacudiu, com firmeza, extinguindo-o.

Entrelaçou as mãos em frente ao altar e pediu, com os olhos fixos na imagem cadavérica. Talvez pra confirmar o seu pedido, talvez pra gritar sem usar a voz, a mulher apertou com força as mãos entrelaçadas, cerrou os olhos e, mais uma vez, pediu.

Perdeu-se, por uns momentos, nos labirintos da sua prece, e inconscientemente, tomada por um remorso de última hora, procurou justificativas ao seu desejo. Poderia um ser humano exigir a morte de outro? Entendeu que sim, finalmente. Alguém que age como ele agiu, não pode ser considerado humano, e se a justiça dos homens é falha e a justiça de Deus tarda, ela optaria por um meio caminho, um atalho em direção ao que era certo.

Decidida, puxou o papel do bolso, com o nome dele devidamente escrito, e amarrou na vela recém-acesa. O calor da chama esquentou-lhe as mãos, trazendo-a de volta ao mundo real.
Sem saber porquê, sentiu que sua prece tinha sido atendida. E olhou com doçura os fundos olhos cadavéricos da imagem.

Por fim, antes de deixar o pequeno altar, beijou de leve a ponta dos dedos e passou-lhes, no manto da Santa Morte.

Já do lado de fora da Igreja, numa escuridão total, as estrelas iluminavam, livres, aquele vilarejo isento de modernidade. E a mulher viu, ou pensou ter visto, na esquina, uma senhora vestida de negro, trazendo nas mãos algo que ela não teve tempo de identificar, pois caiu ao chão, fulminada por um derrame.

Pelo menos foi o que souberam depois.

O que ela não soube, talvez o que ninguém soube, na verdade, era que, dentro da igreja, sobre o altar da Santa Morte, ao lado daquela vela recém-acesa, jazia uma outra vela. Na verdade, apenas um pedaço de cera, agora. Um pedaço de cera que envolvia um outro desejo, um outro papel. Um papel que escrevia o seu nome.

Conto baseado na crendice de um vilarejo situado no interior do México (foto do post), onde se cultua a Morte, num altar, como uma Santa, a quem você pode pedir qualquer espécie de favor.

Wednesday, March 15, 2006

À luz da lua


Ele acordou deitado sobre as raízes de uma árvore. Olhou de relance ao seu redor e sentiu muito medo. Não fazia a mínima idéia de onde estava. Tudo que conseguia notar era a floresta, com uma grande lua branca iluminava as árvores de uma forma engraçada. Lembrou-se de que em sua casa havia um quadro com a mesma paisagem. Mas isso não valia de nada agora.

Ergueu-se limpando a terra das calças e suspirou fundo. Percebeu que a camisa estava rasgada. E suja de sangue. Tentou manter a calma e procurou lembrar-se como viera parar ali. Na sua mente corriam imagens esparsas. Viagem. Bar na beira da estrada. Mulher. A lua. As árvores passando muito rápido. Muito rápido. Sentiu-se tonto e encostou numa árvore próxima. De repente começou a entender. Bar. A mulher no bar.
***
Ela sorriu, tomando um grande gole da bebida paga pelo estranho. Com uma rápida olhada, fez uma análise das possibilidades: boas roupas, relógio caro. Vestia-se como um pastor. A mulher procurou fazê-lo beber mais. Talvez nem precisasse usar o comprimido. Seria bom. Estava ficando caro e era cada vez mais difícil comprá-lo sem receita. Perdeu suas esperanças quando o homem tomou a sua quinta cerveja e permaneceu ótimo. A chance surgiu quando ele levantou-se para ir ao banheiro. Ao passar por ela, deu-lhe um beijo no pescoço. A mulher sorriu mais uma vez e pegou discretamente o copo. Abriu a bolsa, tirou o remédio e o mergulhou de leve na bebida. Porcaria. Devia ter esmagado antes. A pílula azul sempre dissolvia com muita dificuldade na cerveja. Ele voltou rápido do banheiro e perguntou pelo copo. O remédio ainda não dissolvera por completo e desceu quase inteiro pela garganta do homem. Ela esfregou a alça da bolsa, assustada. Mas ele não sentiu nada. Talvez não fosse tão resistente ao álcool assim. Vamos. Vamos sair daqui.
***
Com a imagem da mulher rodando sua cabeça, o homem perdido passou as mãos nos bolsos traseiros da calça, em busca de sua carteira, de documentos. Nada. Só as roupas do corpo. De repente, tudo fez sentido. A mulher, o bar, o golpe. Mas ainda não sabia onde estava.
***
Estou meio tonto, acho que bebi um pouco demais. Tudo bem, eu posso dirigir se você quiser. Ele riu e pôs a mão dentro da blusa dela. Claro. Sem - vergonha. Ela dirigia apressada. Aonde você está indo? Calma, amor. Você vai adorar. Vou adorar. Ele repetia. Vou adorar. Me dá a minha bolsa. Claro.

A estrada estava muito bem iluminada. Pela lua. Grande e branca. Ele olhou a lua. Parou. Me dá a minha bolsa. O quê? A minha.
Antes que a mulher tivesse tempo de terminar a frase, o homem subitamente começou a ofegar e tremer. Ela o olhou de relance e ainda teve tempo de ver a sua boa camisa de pastor rasgar-se antes de perder o controle do carro.
***
O homem perdido na floresta viu um carro passar velozmente pela estrada . O veículo perdeu o controle e bateu em uma árvore. Ouviram-se gritos. Correu. Talvez alguém precisasse de ajuda.

Wednesday, March 08, 2006

1968


"Apesar de você, amanhã há de ser outro dia."
Chico Buarque






A mulher estava sentada em frente ao portão de desembarque do aeroporto. O retorno de seu marido lhe parecia tão improvável que ela já havia acalentado a idéia de sua morte. O telegrama recebido um dia antes, trouxe-lhe à tona um turbilhão de lembranças há muito esquecidas. A prisão. O exílio. A promessa de volta. A espera sem fim. Até hoje.

O avião aterrissou, barulhento, e ela arrancou os óculos escuros jogando-os dentro da bolsa. Os olhos, fixos na escada de desembarque e secos de tanto chorar, já não esboçavam nenhuma reação.

Os passageiros desceram um a um. Uma mulher gorda. Um senhor grisalho. Antônio. O sorriso de alívio há tanto tempo guardado iluminou-lhe o rosto quando ela viu seu marido descer. Espantosamente com o mesmo rosto. Parecia não ter envelhecido um ano sequer desde que se foi. Ele também a viu e sorriu. Desceu as escadas correndo, esbarrando no senhor grisalho, na senhora gorda. Largou as malas no chão e abraçou-se à mulher. Ela sentiu as pernas bambearem ao tocar-lhe a pele, ao beijar o seu rosto.

- Eu não prometi que voltava? - falou, num sorriso, enquanto a mulher, muda, levou-o até o carro pelo braço, como uma criança satisfeita.

O dia passou num susto, como sempre passa nos momentos de felicidade. A mulher não pediu explicações ou esclarecimentos. Apenas procurou aproveitar cada momento daquela presença tão esperada, quase desistida. Bem mais tarde, na cama, depois de uma tão sonhada noite de amor, o marido explicou-lhe que precisava ir embora no dia seguinte. A mulher ainda tentou protestar e levantar-se, quando ele sacou do bolso da calça , jogada em cima do criado-mudo, um papel dobrado e o estendeu à sua esposa.


***
O escritório do ex - delegado ficava no centro da cidade. Um ótimo esconderijo para aquele que tinha sido um dos mais cruéis servidores da ditadura. As inúmeras atrocidades do seu passado foram lavadas com o cargo de chefia em uma ONG conceituada. Ajuda humanitária. Ele nunca sorria da ironia da situação, já que parecia ter se esquecido do seu passado. Cada novo dia de trabalho parecia apagar as feridas causadas pelos choques elétricos, pelas surras de toalhas molhadas e corpos escondidos, muitas vezes no quintal de cimento da própria delegacia.

A porta de vidro bate então com força e um homem alto, de bigode, invade a sala:

- Quem deixou o senhor entrar? - perguntou o ex-delegado.

- Não se lembra de mim, Doutor? - os olhos do homem eram opacos.

O passado voltou-lhe em um único e poderoso flash.

- Isto não está acontecendo.

- Eu te pedi, Doutor. Eu implorei.Você sabe que nunca tive culpa de nada.

A porta fechou-se com um golpe, abafando o som daquelas últimas palavras.

Quem passou pela rua naquele momento pôde ouvir um grito seco e desesperado de alguém que pedia para não morrer.


***
A esposa, nua na cama desde a noite anterior, lia sem parar o papel em suas mãos. Uma folha única. Amarelada. Dobrada ao meio em várias partes. O atestado de óbito de seu marido.