À luz do lampeão
“É preciso ter fé.” – tremeluzia-lhe nas mãos a faca, rebatendo a luz fraca do lampeão.
O homem, com o punhal sobre os joelhos, girava-o, como a pedir alguma coragem.
Acostumado a matar pássaros e bois, nunca soubera como é a morte de alguém.
De dentro do quarto, gemia alto o menino, pedindo uma decisão.
Um golpe só. Firme e certeiro? Vários, repetidos e superficiais?
Que fosse um só. E que desse certo, pelo amor de Deus, que desse certo.
Daria, foi o que lhe prometeu o homem misterioso que lhe apareceu à porta. Barbado e de olhar
bondoso, respondeu-lhe o que não tinha perguntado.
O filho morreria naquela noite. Depois de morto não teria jeito, ele não era Deus, afinal.
Mas antes sim. Antes o punhal, lhe rasgando o peito como a quebrar a casca de um ovo, lhe trazendo de volta o menino saudável e arteiro.
O menino no quarto, afinal.
O punhal. O golpe.
Os olhos do menino, incompreensíveis.
O sangue, o sangue, o sangue.
Manchava as mãos, corria, ferruginoso, por cima da colcha bordada.
O sangue, meu Deus.
As mãos do menino puxando o punhal, Jesus do céu.
Arrancando.
O punhal tilintando no chão, manchado. O punhal e o chão, manchados.
Os olhos do filho, Cristo. Do meu filho.
“É preciso ter fé.” – esperava o pai, lavado em sangue inocente, sentando no outro cômodo.
Esperando o filho.
É preciso. Mas por quanto tempo?