À deriva
Hoje contava cinco dias de mar aberto. Cinco dias sem água ou comida, navegando a esmo por um oceano de um azul quase obsceno. Já não tinha forças para se mover ou falar; mesmo o pensamento se arrastava, moribundo.
A fraqueza do corpo lhes roubara a memória do naufrágio. Tudo que restava era um esgarçado desejo de sobreviver.
Embaixo dele, os destroços da madeira rasgavam-lhe novas feridas na pele.
Soçobrava, em um mar misericordiosamente tranqüilo.
Foi quando aconteceu.
Como numa praga bíblica, a onda ergueu-se do nada e sumiu com o que restava dos destroços, lavando-lhe a solitária esperança de náufrago.
Arrastado pela força daquela água irremediavelmente azul, assombrou-se ao sentir a firme transparência do vidro.
Do lado de fora da garrafa, um par de mãos sacudia a água, senhor absoluto daquela pequena vida.