Saturday, August 26, 2006

Sete passos


Quando dei por mim, já tava era em frente da casa. Aquela grande, de pintura gasta e juazeiro no quintal. Era noite de sexta-feira bem igual a uma ruma de outras, nada de lua cheia, nada de zuada estranha, nada de nada. Mas se bem que era pior, juro por Deus. Um silêncio tão barulhento que chegava a doer nos ouvidos. Sacudi a cabeça, tentando varrer o restinho daqueles pensamentos e me cheguei bem rente ao portão velho. E empurrei. A ferrugem se esfarinhou na minha mão. E eu esfreguei as palmas na calça surrada. Era tanto silêncio que a casa vazia respondeu. Será que era ela? Ou era eu? - Respondeu o meu juízo. Dez da noite. Dez da noite de uma sexta-feira e eu sozinho na beira duma casa velha, me fiando apenas num sonho que eu tive noite passada. Diga aí. Cumpade Maneco sentado no pé da minha cama, todo coberto com a fumaça daquele cigarinho de palha que ele não tirava do canto da boca nem pra tomar banho. Tão real, tão bem contadinho que eu agüentei não. Acordei ainda com o cheiro do fumo perfumando o quarto e o caminho fresco na minha cabeça. Sete passos do juazeiro. Foi o que eu fiz. Cheguei na frente da casa e contei direitinho. “Quando tiver rente a ele, pare. Vire pra esquerda e conte sete passos, nem longos, nem curtos.” Contei, sentei. E cavei. Com a mão, do jeitinho que ele mandou. Num instante senti foi um negócio de barro meio gelado. Agoniado, eu forcei a areia seca daquele quintal e vi. Só foi ruim pra abrir. Nem porquê tivesse emperrado não. Minhas mãos é que andavam tremendo com a gota.

Mas nem bem vi as moedas brilhando mais que espinhaço de pão doce, quando senti. Em pé, atrás de mim. Respirando grosso, me pedia o que era meu. Quase chorando. Tive até um pouco de pena, sabe? Mas disse não. Aí se danou. Ciscou, berrou feito porco moribundo numa voz que eu tinha ouvido era nunca.
E as pernas já não conseguiam mais ficar juntas não.
Foi quando me lembrei do conselho de Maneco. Vão querer tomar o que é teu. Mas aí você fica firme. Não dá de jeito nenhum teu tesouro. Teu.
Demorei um pouco pra contar, mas foi pra você entender direitinho.
O lugar tu já sabe. Sei que tu sabe. Vai lá na sexta agora. De dez horas. Nem mais nem menos. E faz o que eu fiz.
Vai aparecer pra tu. Vai querer o que é teu. Vai te prometer um bocado de mentiras. Mentira sim! Escreve o que eu tô te dizendo.
É só tu ser forte.
Porque eu tô aqui. E vou ajudar você.
É só tu ser forte. Forte como eu não fui.
Sabe que eu ando tendo uns pensamentos esquisitos? E se não era Maneco no meu quarto? Se não era ele me mandando fazer essas coisas?
Ah! Melhor é deixar pra lá, sabe? Tem coisas que a pessoa explica não.
Ando te esperando, tu sabe onde, tu sabe quando. E tu sabe o que fazer.
Agora....
Acorde.

Saturday, August 19, 2006

O terminal


O solavanco do cano frio da poltrona bem na minha testa fez-me abrir os olhos turvados de sono e eu vi se formar lentamente a figura de um cobrador.
- Senhora? A senhora precisa descer.
Tinha subido naquele ônibus pra me esconder da pior tarde da minha vida. Precisava sair correndo do meu apartamento, pra não morrer de desgosto, e acabei entrando no primeiro que apareceu.
- O senhor me desculpe, eu acho que acabei...
- A senhora precisa descer. Agora.
-...dormindo.
O tom de voz dele conseguiu ao mesmo tempo atiçar a minha curiosidade e me assustar. No cara ou coroa, o medo perdeu.
- Por quê?
- Tá indo pro terminal.
A coisa acabava de passar de curiosa a engraçada. Qual o problema de ir ao terminal? Fico quietinha aqui, moço, juro. Mais tarde, quem sabe, um bom café ruim, um papo leve pra esfriar a cabeça, e depois...O depois a gente vê, certo?
- A senhora desce no próximo ponto, antes do terminal.
- Mas por quê?
- No próximo ponto.
E me deu as costas. O filho da puta simplesmente me deu as costas, acredita? E eu sem dizer nada. Paradinha, olhando os sapatos dele irem embora, tomando o rumo daquela cadeira tão alta, que eu achava linda quando criança.
A pior tarde da minha vida teve despejo, desprezo, desgraça, enfim. Será que consigo outras letras “d”? Sim, “d” de dúvida. Meu Deus, acho que tô ficando louca. “D”, de dúvida.
O cobrador abaixou-se e falou algo ao motorista. Eu não ouvi, porque o ruído estridente da rua abafou o som da sua voz.
Só vi que ele apontou. Direto pra mim.
Mas o motorista, de olhos na estrada, apenas sacudiu a cabeça, decepcionado. Olha aí. Mais um “d”.
Até que meteu o pé no freio.E parou num ponto de ônibus deserto, mas estranhamente acolhedor. Como uma caixa vazia de panetone que a gente encontra depois do Natal, sabe como é?
Num golpe surdo, a porta se abriu. E o cobrador me indicou a saída.
- É a última, dona. Por favor...
- Não é a última.- disse – Fico no terminal.
- A senhora não pode.
-Claro que posso.
- Senhora...
- Fico no terminal.
Submisso, o cobrador chegou-se ao motorista. Parecia explicar a situação. Ele apenas sacudiu os ombros. Realmente não estava lá muito aí pra mim.
Então a porta fechou-se mais uma vez e seguimos viagem. Juro que quase ouvi as fundações daquele ponto gemerem, lamentando a minha ida.
Quando chegamos ao terminal, rapidamente me decepcionei. Tanta confusão por nada. Uma simples parada final. Escura e potencialmente perigosa.
Perguntei se podia ficar no ônibus. Só que não havia mais cobrador pra responder. Na verdade não havia mais ninguém.
Mas então a porta se abriu, pela última vez, e eu vi a minha avó subir os degraus, naquele seu igeiro passinho e sentar-se ao meu lado. E depois meu avô. E minha gata. E meu primo Zeca. E mais uma pá de gente que eu não via fazia tanto tempo.
Não via porque já andavam todos do lado de lá.
Não, não gosto dessa palavra, fala não. Acho tão fúnebre.
Com o ônibus cheio, retornou o motorista, dessa vez de cabeça baixa. E partimos.
Curiosa, eu percebi que ele me olhava pelo retrovisor. Na verdade, olhava era modo de dizer, porque ele não os tinha. Não tinha nada dentro do buraco dos olhos.
Ao meu lado, senti o inconfundível peso de uma cabeça descansando no meu ombro. Mas ao invés daquele cheirinho de talco de avó, que eu tanto amava, senti foi um enojado odor de jasmim e cravo, e terra úmida.
Foi nesse momento que virei o rosto pra janela.
E choveu.
“A gente não precisa saber de tudo, não é mesmo?” - pensei, enquanto desenhava, no vidro embaçado, um grande “d”.
De destino.

Sunday, August 13, 2006

Desejo


- Eu queria que você estivesse morto...
Foi o que o rapaz lembra de ter dito antes de tudo isso começar. Era uma manhã de segunda-feira, invariavelmente tediosa, e ele tinha chegado atrasado mais uma vez. Tentou ainda passar despercebido, mas foi impossível. Em uma situação normal, seu chefe o chamaria pra conversar dentro da sua sala, uma angustiante masmorra de vidro, de onde seria visto por todos os colegas e mais uma vez, humilhado, é óbvio. Mas não naquele dia.
Talvez irritado com a mulher, com o vizinho, com o filho, ou apenas cansado de ver aquele funcionário incompetente, desafiar-lhe a autoridade, chegando atrasado mais uma vez, despejou toda a sua ira ali mesmo. Aos berros, em frente a todos. Seria mais fácil despedi-lo, mas não. Um inútil como aquele ainda ia passar por poucas e boas nas suas mãos.
E assim foi feito: assim que o viu chegar, o chefe correu em sua direção fumegando como uma velha locomotiva. E despejou com o dedo em riste todos os impropérios que conhecia. Seu último erro.
Do lado de cá do dedo, o rapaz ainda assustou-se por alguns segundos. Realmente não esperava tal reação. Mas a verdade é que o medo em suas veias rapidamente foi substituído por um ódio venenoso. E ele desejou.
A coisa não demorou a acontecer. O chefe voltou pra dentro do seu aquário, ainda profundamente nervoso e até precisou tomar um gole d´água. Sentindo-se um pouco mal, tentou voltar pra casa pouco depois da hora do almoço reclamando de uma dor no peito. Caiu fulminado por um ataque cardíaco, em frente à porta do carro, ainda de chave na mão.
Ele foi o primeiro.
Naquela tarde, já dentro de seu apartamento de aluguel vencido, o rapaz ruminava seu ódio. O céu parecia responder àquele sentimento, derramando-se em água e trovejadas.
Mesmo debaixo de tanta chuva, chegou à conclusão de que não seria bom ficar em casa. Catou um guarda-chuva velho, e tocou no trinco da porta para abri-la, quando a campainha tocou.
Mirou o olho mágico e caiu dentro dos olhos do seu senhorio. Prendeu a respiração e quis ser invisível.
“Abra a porta, rapaz, eu tô vendo você!” – urrou o cobrador.
“Tô de saída” – respondeu, pateticamente.
“Não tá não. Até você me pagar você não vai pra canto nenhum...”. E cruzou os braços, num claro sinal de que estava falando muito sério.
Instintivamente, pensou no chefe. E se não fosse um acaso? E se pudesse realmente?
Antes que conseguisse prendê-lo, o pensamento escorregou-lhe do cérebro e saiu pela boca.
“Eu queria que você estivesse morto” – disse, sem sentir.
“Sim, palhaço, mas eu não estou, então...” – o tom de humor do senhorio sumiu, junto com sua voz.
E o rapaz, ainda de olho pregado na porta, viu aquele corpanzil derreter-se como um monte de esterco em direção ao chão, num baque surdo.
E começou a rir. Era verdade. Era fácil desejar. Dois problemas resolvidos num único dia.
Empurrou com dificuldade aquele monte de gordura esparramada e seguiu em direção à rua.
Fazia frio. A chuva já não caía, mas a água escorria com rapidez pelas calhas. Apertou o casaco no peito e seguiu em direção a qualquer lugar. Era tarde, mas ele não precisava mais ter medo. Nunca mais.
Andando na rua deserta, quis fumar, mas não tinha mais cigarros. Percebeu então que um carro se aproximava, diminuindo a velocidade. O homem no bando do passageiro se ajoelhou em sua direção e tentou jogar-lhe algo no rosto. Um ovo? Mas não. Não conseguiu, porque o deixou cair no asfalto gelado quando precisou apertar suas mãos ao redor do pescoço. Em busca de ar? O motorista, numa patética angústia, pediu o máximo do acelerador e quis seguiu em direção ao hospital.Quis. Mas perdeu o controle do automóvel em menos de cinco metros, encontrando um poste que se partiu na queda. É. E o carro pegou fogo. Isso. Pegou fogo. Um serviço limpo, dessa vez. E bem passado.
Mastigando um sorriso, o rapaz, seguiu pra casa vislumbrando um horizonte de possibilidades.
Mas tudo que encontrou foi a polícia, acampada ao redor do monte de banha despejado no chão da sua porta.
Perguntas foram feitas, dúvidas esclarecidas. Ninguém o tinha visto sair, nada o ligava à morte. No final, apenas uma triste fatalidade, senhor policial.
E fechou a porta enquanto ligava a televisão, satisfeito.
Foi vendo o telejornal que teve uma idéia. Daquelas bem más, como todas as idéias boas.
Fechou os olhos, balbuciando seu mantra particular.
E viu a moça do tempo vomitar uma boa dose de sangue no seu vestido de marca enquanto previa mais chuva. Não se lembrava daquela emissora ter alguma vez interrompido a programação.
Com ares de supervilão, entendeu que seu poder não tinha limites. Afinal, só o pensamento é verdadeiramente livre, não é mesmo? E ouviu o telefone tocar.
Sua mãe. Notícia terrível. “Seu pai.”- traduziu entre soluços.
“Seu poder não tinha limites.”
Angustiado, deixou o telefone cair.
- Eu queria estar morto – desejou, numa enxurrada de remorso.
Do outro lado da linha uma voz de mãe ainda chorava, premonitiva, chamando inutilmente pelo filho.
Só em pensamento somos verdadeiramente livres.








Wednesday, August 02, 2006

Sabedoria popular



A boiada seca
Na enxurrada seca
A trovoada seca
Na enxada seca

Carlinhos Brown e Marisa Monte



A menina ainda tentou proteger com as mãos a testa que sangrava, mas não adiantou. A pancada certeira do velho atingiu em cheio a sua cabeça, derrubando-a ao chão empoeirado.
“Mas ela mereceu. Mereceu ser arrastada de casa pelos cabelos, arada como se fosse um boi pela aquela terra esturricada. Porque já faz quase seis meses que não cai uma gotinha d´água que seja, na plantação, doutor! É possível isso? Me diga! Feijão, arroz, e até mandioca, tudo morrendo dentro da areia.”
Na fazenda de Manequinho, uma doença esquisita comeu o gado, depois que nasceu um garrote de duas cabeças. O vaqueiro dele aboiou o que restou dos animais pra longe. Tinha matado a esposa pisoteada com as botas.
Santo José passou e nada de chuva.
Nas paisagens daquele sertão, só o mandacaru verdejava, firme, prevendo a desgraça que se avizinhava.
Em volta dela estavam todos, com seus chutes e socos, golpes de inúteis guarda-chuvas, bengalas e palavras de ódio, como se agredissem a própria fome, a própria seca. Como se agredissem a própria morte.
“Mas ela mereceu, doutor, mereceu porque diz que o padre endoidou. Fechou a porta da Igreja e não deixou ninguém entrar. Ninguém! Disse que tinha visto o tinhoso, o senhor perceba, o tinhoso!”
Reprimida e angustiada, Dona Neném sentiu o bico do seio murcho entumecer e uma umidade quase esquecida molhar-lhe a anágua quando acertou o nariz da menina com seu sapato de festa.
“Morre, desgraça!”
As pessoas não sabiam se a beata se referia à menina, ou à sua própria.
Já sem força pra tentar se proteger dos golpes, a menina só gemia, enquanto sua mãe, do alto do pequeno morro, assistia a tudo, esperando de braços cruzados. Impávida.
Assustado, o velho ergueu mais uma vez a bengala feita de pinho de riga e desceu-a de encontro àquele rosto já dilacerado. Nenhum ali nunca tinha visto o olho de uma pessoa estourar. Até então.
Claro que foi! Claro! Num tá vendo não? Menina branquela daquele jeito, nascida de mãe sem pai. Mãe sem pai sim, senhor! A maldita disse que sumiu no mundo, que morreu. Conversa. Filha do demo e pronto ! Deus me proteja!”
Deitada no chão, ela arquejava, enquanto o brilho dos vivos lentamente deixava os seus olhos.
Como obedecendo a uma ordem muda, todos pararam, quase ao mesmo tempo. Dona Neném ainda pensou em jogar um terço em cima daquele vestido surrado, mas desistiu. Segundo, da mercearia, perdeu-se por alguns instantes no tufo de pêlos tão pálidos, que farfalhavam ao vento, depois que o vestido subiu, meu Deus, e sentiu o pau endurecer. Novinha, bonita sim. Como ia ser bom se.
Foi numa calada procissão que seguiram de volta à cidade. Alguém puxou uma reza, repetida em ladainha pelos demais.
De cima do morro a mãe os viu se arrastarem pra longe. Do meio do povo, um moleque correu em sua direção, naquela desabalada falta de preocupação que a gente vai perdendo ao longo do tempo.
“Mandaram entregar pra senhora.” – disse, ao chegar, estendendo-lhe um maço amarrotado de dinheiro. – “É pra enterrar.”
E desceu de volta, mais rápido ainda.
No horizonte, uma nuvem negra caminhava em direção à cidade. Carregadinha de chuva.